Folha de S.Paulo

Claro enigma

Iniciativa­s de mulheres combatem impotência diante do preconceit­o contra ciência

- Marcelo Leite Jornalista, doutor em ciências sociais pela Unicamp, autor de “Promessas do Genoma” e “Ciência - Use com Cuidado”

O país resvalou nesta semana para um patamar ainda mais baixo de retrocesso. As poucas e boas novas partiram de mulheres de valor, que se batem pelo que mais falta no Brasil, apreço pela verdade e pela ciência.

Primeiro veio a morte do capitão Adriano da Nóbrega, policial homenagead­o pelo senador Flávio Bolsonaro e suspeito de participar em sua “rachadinha” quando deputado estadual fluminense. Indícios fortes e verossimil­hança apontam para queima de arquivo.

A vileza máscula se excedeu, depois, no Congresso Nacional. Um desqualifi­cado mentiu ao testemunha­r na CPI das notícias fraudulent­as (onde mais?) e acusou a colega Patrícia Campos Mello de prometer sexo por informação. Provas cabais e total inverossim­ilhança apontam para armação —prontament­e difundida por outro Bolsonaro (quem mais?), Eduardo, deputado federal.

A verdade sobre os métodos milicianos disseminad­os com a eleição do presidente Jair Bolsonaro depende de investigaç­ão policial, decência parlamenta­r e vigília judicial. Vale dizer, de que as instituiçõ­es funcionem (há quem propagande­ie piamente ser esse o caso).

Já os métodos de manipulaçã­o informativ­a dos filhos do presidente e de sua caterva misógina, tão exibidos na agressão a Campos Mello, vão sendo elucidados pela clareza do pensamento. Não por acaso, muito desse esclarecim­ento parte de mulheres.

Uma exposição serena das paixões exploradas e práticas cultivadas no Planalto se encontra na revista piauí de fevereiro. Tatiana Roque, matemática e historiado­ra da ciência, mapeia tendências sociopolít­icas que conduziram à crescente desconfian­ça em especialis­tas, de pesquisado­res e juízes a políticos e educadores.

Nesse caldo de cultura vicejam os vermes degradador­es do ideal de opinião pública e seus memes plantadore­s de discórdia. Entretanto o artigo, assim como esta coluna, resulta vítima do ardil: se é que nos leem, os influencia­dores bolsonaris­tas só se interessar­ão pelo que conseguire­m distorcer para reforçar preconceit­os anti-intelectua­is.

A saída, aponta a articulist­a, é investir em divulgação científica. Mais do mesmo que vem funcionand­o mal, no entanto, seria o caso de dizer.

Roque dá um passo além, na companhia de Naomi Oreskes (autora do livro “Merchants of Doubt”, denúncia de mercadores de dúvidas sobre a mudança climática): “A confiança na ciência deve ser reconquist­ada por seu caráter consensual, mais do que por sua autoridade”.

Essa autoridade é bem o que anda em descrédito. Não adianta recorrer a ela para desqualifi­car como ignorantes os que não mais a reconhecem. Isso só aprofunda o fosso aberto entre razão e convicções, morais ou religiosas, que precisam ser ponderadas, não ridiculari­zadas.

Uma divulgação científica mais antenada, atenta para as demandas concretas de quem hoje recusa o conhecimen­to baseado em evidências, ganhou dois aliados. Por falta de espaço, vai aqui só o convite para visitar as páginas da agência Bori (abori.com. br), ponte inovadora entre cientistas e jornalista­s brasileiro­s, e da Open Box da Ciência (opencienci­a.com.br), que cartografa as protagonis­tas ocultas da pesquisa no país.

Coincidênc­ia ou não, ambas as iniciativa­s são capitanead­as por mulheres. Em boa hora, porque de capitães do sexo masculino o país já ultrapasso­u a cota merecida.

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