Folha de S.Paulo

Sai o rei de espadas

Prática que mistura esoterismo com arte, tarô seduz cada vez mais adeptos em busca de respostas e fascinados pela estética das cartas, como as ilustradas por Salvador Dalí, que ganham nova edição

- Bruno Molinero

são paulo As cartas estão na mesa. Ao lado delas, uvas verdes e cristais de diferentes tamanhos e cores. No chão, um gato preto chamado Tião às vezes espreita. Até que ela vira a primeira carta: o Diabo.

Eu, que sempre achei que a astrologia fosse a prima cirandeira da homeopatia, estou sentado em um apartament­o no centro de São Paulo, rodeado de plantas e estátuas de duendes, para jogar tarô pela primeira vez.

A prática atrai cada vez mais interessad­os e extrapola as fronteiras do misticismo, com livrarias que vendem uma série de títulos sobre o tema e os mais diferentes baralhos. Um dos mais recentes é o ilustrado por Salvador Dalí nos anos 1970, relançado no fim do ano passado pela editora Taschen.

Minha taróloga é Juliana Bernardo, exemplo dessa modernizaç­ão do tarô, ao dar consultas pessoalmen­te e por WhatsApp —os jogos custam R$ 3 por minuto, independen­temente da plataforma.

Pergunto se ela acha que o tarô vem se tornando a astrologia do hipster que procura algo mais exclusivo do que a conversa sobre signos.

“O tarô tem 78 cartas, o que é bem mais do que os 12 signos. Isso faz com que seja um pouco mais para iniciados. Mas não pertence só aos hipsters”, ela diz. “Aparecem aqui ex-padres, monges budistas, prostituta­s, deputados, artistas...”

Entre as cartas, 22 são arcanos maiores, que representa­m fases da vida, e 56, menores, divididos em quatro naipes, como o baralho comum que usamos para jogar buraco.

Quando as cartas são reveladas, elas contam uma história com imagens. Processo conduzido pelo tarólogo, mas que é recheado de significad­os por quem se consulta. E é a partir dessa narrativa visual que o tarô passa a ser também estética —e a ter um pé no mundo das artes.

As cartas do baralho criado por Dalí nos anos 1970 são um exemplo. Algumas das ilustraçõe­s foram feitas por ele, enquanto outras são obras de arte bem conhecidas, mas cheias de intervençõ­es do artista.

O arcano número um, o Mago, é o próprio Dalí. No fundo, estão os arcos da Sainte-Chapelle, de Paris. À frente da figura do pintor, está uma mesa presente uma de suas obras, “A Última Ceia” (1955), exposta na National Gallery of Art, de Washington. Na carta, Dalí não é só o Mago —ele está na mesma posição que Jesus.

Há várias outras referência­s ao tarô nas artes. Como o cineasta chileno Alejandro Jodorowsky, que é também estudioso da prática e lançou um baralho no qual recupera o tarô de Marselha de 1400, um dos mais famosos.

Nos anos 1970, quando Jodorowsky tentava produzir o filme de ficção científica “Duna”, ele chegou a chamar Dalí para ser um dos atores. E, para convencê-lo a conversar, enviou ao espanhol o arcano 12 (o Enforcado). Dalí topou, mas o filme nunca foi produzido.

Tentei falar sobre tarô com Jodorowsky, mas seu telefone só deu caixa postal. Cheguei a enviar a figura do Enforcado

para o seu WhatsApp, mas ele não respondeu.

Mas, nos extras do seu filme “A Montanha Sagrada” e no livro “O Caminho do Tarot” (ed. Chave), o chileno conta um pouco da sua visão: “Se você o usa para prever o futuro, se converte em um charlatão.” Para ele, as cartas fazem um raio-x do presente.

Já na música, a banda Led Zeppelin colocou a ilustração do arcano Eremita em seu quarto disco. Renato Russo colecionav­a baralhos. E Aleister Crowley, que influencio­u uma legião de artistas, tinha um tarô próprio (veja ao lado).

Enquanto as minhas cartas eram viradas na consulta e mostravam pistas sobre relacionam­entos, vida financeira e outros pontos, pensava no porquê de esses baralhos atraírem tanta gente.

A busca por respostas é uma possibilid­ade. Mas há outra: o tarô é parecido com enxergar desenhos em nuvens.

O conjunto de cartas forma uma massa que ganha significad­o com as questões, angústias, desejos e o inconscien­te de quem se consulta. Em outras palavras, uma mesmíssima nuvem pode parecer um elefante para você, mas lembrar um carro para outra pessoa.

“Pode até ser. Mas no seu jogo apareceu um elefante, depois outro elefante e mais um elefante”, comentou Juliana no fim do meu atendiment­o.

Nas palavras dela, grande parte das minhas cartas trouxeram sinais de encerramen­tos e de começos. “Desde já, você está buscando experiênci­as mais autênticas”, ela disse.

Uma manada (e um gato preto) frequentav­am a sala. bolos do cristianis­mo.

Num primeiro momento, o jogo se difundiu pela Itália, mas virou moda mesmo na França. Um dos baralhos mais antigos ainda em circulação é o Tarô de Marselha, criado na cidade francesa de mesmo nome. Para alguns estudiosos das cartas, como o cineasta chileno Alejandro Jodorowsky, o tarô de Marselha seria o verdadeiro tarô.

De fato, todos os baralhos modernos derivam dele de alguma maneira, inclusive o mais popular de todos, o Tarô Rider-Waite. Publicado em 1910, ele traz releituras das imagens, o que para os puristas beira a heresia. Parte da interpreta­ção esotérica depende das figuras, e alterar as formas pode compromete­r a mensagem.

Quase nada se sabe sobre a evolução mística do baralho nas ruas, mas quem primeiro lhe atribuiu o poder da vidência numa publicação organizada foi o ocultista francês Etteilla. Ele passou a ver o futuro dos consulente­s pelas cartas após a Revolução Francesa. Outro estudiosos, o clérigo suíço Court de Gébelin, foi quem primeiro registrou que o tarô teria raízes no Egito —e o baralho mais enigmático de ler é justamente o egípcio, pela profusão de símbolos.

O status de chave para abrir o mundo esotérico, no entanto, só foi definitiva­mente alicerçado após as publicaçõe­s de Éliphas Lévi, o maior ocultista do século 19. Lévi estabelece a associação entre o tarô e a cabala, dando-lhe atributos de transcendê­ncia espiritual.

O psiquiatra suíço Carl Jung reconheceu que pelas cartas do tarô seria possível acessar memórias coletivas, os arquétipos. É uma pista que flerta com a ciência. Ainda espero que alguém consiga uma razão mais concreta para a curiosa capacidade de as cartas retratarem sentimento­s, fatos, pessoas e presságios. Até lá, não vou brigar com o imponderáv­el. Sigo apenas lendo o baralho.

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Reprodução Cartas dos baralhos do Dalí, de Marselha e Rider-Waite

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