Folha de S.Paulo

Marx e o serviço de pós-venda

O capitalism­o pega uma coisa bonita e a transforma numa abominação

- Ricardo Araújo Pereira Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de ‘Boca do Inferno’

Para descobrir que o capitalism­o tem a capacidade de estragar tudo, a gente não precisa ler Marx (até porque Marx também tem a capacidade de estragar tudo, a julgar pela quantidade de gente que o leu e foi fundar regimes que ele, a princípio, não aprovaria).

Basta passar pelo suplício do serviço de pós-venda, quando adquirimos alguma coisa. O serviço de pós-venda é uma das mais eloquentes demonstraç­ões

do modo como o capitalism­o pega uma coisa bonita, como a cortesia, e a transforma numa abominação.

Serviço de pós-venda é diferente de ser simpático: tratase de jogar delicadeza na cara dos clientes. Neste momento, eu tenho receio de adquirir bens ou serviços. Porque já sei que, dois ou três dias depois, vou receber um telefonema doloroso. “O senhor está satisfeito com o produto? De zero a dez, em que zero é muito insatisfei­to e dez é muito satisfeito, qual é o valor da sua satisfação? O nosso atendiment­o foi prestável? Quão prestável, de zero a dez? Vai recomendar a nossa marca aos seus amigos? Com que entusiasmo, de zero a dez?”

Não faltará muito até que alguma empresa invente o serviço de pós-pós-venda, em que se avalia a qualidade do serviço de pós-venda. “O nosso inquérito de pós-venda o irritou? Quanto, de zero a dez?” E um inevitável serviço de pós-pós-pós-venda, para julgar a eficácia do pós-pós. “Por causa dos nossos inquéritos, o senhor já tem vontade de se matar? Quanta vontade, de zero a dez?”

Marx esteve a perder tempo com a teoria do valor-trabalho quando bastava ter chamado a atenção para o serviço pós-venda. As pessoas talvez tenham dificuldad­e em compreende­r que a criação de mais-valia resulta sobretudo de trabalho não pago —ou talvez compreenda­m mas não se importem.

No entanto, todo mundo compreende a desagradáv­el opressão em que consistem os telefonema­s do serviço de pós-venda.

Quando o telefone toca após uma transação comercial, eu já atendo aos gritos: “ESTAVA TUDO ÓTIMO! DEZ EM TODAS AS CATEGORIAS! VOU RECOMENDAR AOS MEUS AMIGOS TODOS, MESMO ÀQUELES QUE NÃO VEJO HÁ MUITO TEMPO. VOU LIGAR DE PROPÓSITO PARA LHES FALAR DO SEU ASPIRADOR! BOA TARDE!”. E desligo.

Mais do que a exploração do homem pelo homem, é a chateação do homem pelo homem que me desumaniza.

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Luiza Pannunzio

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