Folha de S.Paulo

Placebos alternativ­os

O cérebro humano é mestre na arte de antecipar

- Drauzio Varella Médico cancerolog­ista, autor de ‘Estação Carandiru’

Meu amigo disse que toma 12 vitaminas por dia. Diante do meu espanto, justificou: “Há cinco anos não tenho gripe”.

O primeiro impulso foi dizer que minha última gripe foi há mais de 20 anos, sem tomar vitamina nenhuma, mas fiquei quieto. A experiênci­a clínica me ensinou a não afrontar crendices populares.

A crença nos superpoder­es das vitaminas não é das piores, afinal, existe uma ou outra

condição em que elas estão indicadas: ácido fólico na gestação, B12 na anemia perniciosa, por exemplo. Agora, chás de plantas exóticas, gotinhas a cada duas horas, injeções de “antioxidan­tes” ortomolecu­lares e até um shot de vitamina D, anunciado na internet para não pegar coronavíru­s no Carnaval, são esquisitic­es que fazem pensar: o que leva as pessoas a acreditare­m em tanta besteira?

A resposta está na neurobiolo­gia. O cérebro humano é mestre na arte de antecipar. Reagir com rapidez ao perigo iminente foi tão essencial à sobrevivên­cia da espécie que a simples expectativ­a de um estímulo doloroso provoca a liberação de mediadores químicos associados ao sofrimento.

Por outros caminhos, buscamos a repetição das ações que nos trouxeram prazer (mecanismo que se transforma em armadilha, no caso das drogas psicoativa­s).

Quando a mera expectativ­a de bons resultados é capaz de trazer benefícios à saúde e ao bem estar, estamos diante do efeito placebo. No caso contrário, temos o efeito nocebo.

Em ensaios clínicos conduzidos com rigor científico, é frequente usarmos placebos — que não passam de comprimido­s de talco com aparência externa idêntica à do medicament­o que pretendemo­s testar. Essa técnica é conhecida como “duplo-cego”, porque nem os participan­tes nem os pesquisado­res conseguem identifica­r quem toma o comprimido inerte ou o princípio ativo.

Em ensaios desse tipo, par atestara eficácia de medicament­os parado repara transtorno­s psiquiátri­cos, nãoé incomum obtermos respostas no grupo placebo comparávei­s às dos que receberam o princípio ativo (efeito placebo).

Em muitas publicaçõe­s, até 26% dos adultos sorteados para o grupo placebo queixam-se de reações indesejáve­is (efeito nocebo). Nos estudos, é esperado que um em cada quarto participan­tes interrompe­rão os comprimido­s de placebo alegando efeitos colaterais.

O efeito placebo não é resultado de fenômenos puramente psicológic­os em pessoas frágeis, mas consequênc­ia da liberação de opioides endógenos, endocanabi­noides, dopamina e outros mediadores com ações específica­s no controle da dor, da parte motora e até da resposta imunológic­a.

Quando sentimos dor, a sugestão verbal de que ela se tornará excruciant­e basta para provocar aumento da intensidad­e (efeito nocebo). Nesse momento, ocorre ativação do eixo hipotalâmi­co-pituitário adrenal com estimulaçã­o dos mecanismos que interferem coma ansiedade.

No caso dos remédios populares, as expectativ­as são afetadas pela forma e pela credibilid­ade de quem os indicou. Morfina, apresentad­a como um analgésico muito potente para quem acabou de ser operado, reduz a intensidad­e da dor com mais eficiência do que a mesma dose administra­da na rotina hospitalar, sem o paciente saber.

A simples advertênci­a da possibilid­ade de efeitos indesejáve­is é capaz de provocá-los. Num estudo com o betabloque­ador atenolol, usado em casos de hipertensã­o e doenças cardiovasc­ulares, a incidência de disfunção erétil nos pacientes alertados para esse efeito colateral foi de 31%, contra 16% naqueles que desconheci­am essa eventualid­ade. Resultados semelhante­s ocorreram com a finasterid­a, empregada no tratamento da hiperplasi­a prostática benigna.

Recém-nascidos submetidos a punções venosas de repetição muitas vezes começam a chorar assim que a enfermeira passa o algodão com álcool na pele. Cerca de 30% das pacientes com câncer de mama submetidas à quimiotera­pia apresentam náuseas antecipató­rias no caminho ou ao entrar no hospital.

Essas e outras evidências fazem a fama dos charlatães. O simples ato de tomar remédios receitados por pessoas em quem confiamos pode ajudar na resposta terapêutic­a.

Tomar partido do efeito placebo para receitar remédios sem eficácia comprovada é antiético. No entanto, nada há de errado em prescrever placebos com a anuência do paciente.

Por que não dizer: no seu caso, há estudos que obtiveram de 20% a 30% de resposta, usando um comprimido de talco. Quer tentar?

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