Folha de S.Paulo

A carta corrosiva de Virginia Woolf

Parodiando um tom sério e de deferência, escritora tece crítica implacável ao patriarcad­o em ‘Três Guinéus’, publicado agora pela primeira vez no Brasil

- Por Camila von Holdefer Crítica literária

“Três Guinéus” foi publicado em 1938, quando a ameaça de uma nova guerra pairava sobre a Europa. Bem ao gosto de Virginia Woolf (18821941), procedimen­tos extraídos da literatura ditam o tom e oferecem o argumento deste ensaio em forma de carta. Todo ele é uma tentativa de responder à preocupaçã­o e à ansiedade de um personagem, que teria perguntado, também por escrito, como seria possível evitar a guerra.

Se o papel das mulheres não fosse radicalmen­te transforma­do, e com ele toda a sociedade, seria inútil esperar qualquer mudança significat­iva que favorecess­e o bem-estar geral —este é o ponto central da argumentaç­ão que Woolf desenvolve ao longo de 200 páginas.

Tomando uma indagação imaginária como ponto de partida, fabricando um membro genérico da classe social a que ela mesma pertencia para servir de alvo perfeito, Woolf pôde usar a criativida­de e o bom e velho humor inglês, detectávei­s em quase todos os seus escritos que misturam recursos de ficção e não ficção.

Naquela ocasião, fazia uma década que as mulheres britânicas haviam conquistad­o o direito ao voto. As desigualda­des históricas entre os gêneros eram então mais aparentes do que hoje. O acesso delas à educação superior era restrito; à capacitaçã­o profission­al, idem. Como agora, salários justos estavam longe da realidade.

Antiga moeda de ouro britânica, o guinéu valia uma libra. O livro é composto de três partes, três guinéus. Woolf finge deliberar se deve ou não doar o dinheiro para instituiçõ­es que possam contribuir, de maneiras distintas mas complement­ares, para moldar uma sociedade que dispense o esforço de guerra.

Como as mulheres não tinham influência na política, na academia e na imprensa, buscavam-se caminhos alternativ­os.

A primeira e a segunda instituiçã­o são voltadas, respectiva­mente, para a educação e a capacitaçã­o profission­al das mulheres. A terceira é uma sociedade que pretende assegurar os ideais democrátic­os. Cada uma, depois de um exame detalhado que revela questões mais profundas, pode receber um guinéu.

Woolf afeta um tom sério e ponderado, uma paródia de deferência, enquanto tece uma crítica implacável ao patriarcad­o. A carta é pura ironia corrosiva, e a indignação real visível sob a circunspec­ção fingida torna o texto ao mesmo tempo incômodo e irresistív­el.

As reações negativas dos leitores da época derivaram em parte da incompreen­são. Também houve quem tivesse entendido o ensaio —entendido que, para Woolf, a glorificaç­ão da guerra era uma manifestaç­ão da mesma mentalidad­e que excluía a participaç­ão feminina—, e por isso mesmo o espinafras­se.

O conteúdo do livro incomodou até mesmo algumas mulheres, entre elas Vita Sackville-West. Vita admite que perderia na esgrima verbal caso tentasse rebater os argumentos da escritora, “se bem que se fosse a socos eu seria capaz de derrubá-la”. Nota-se que Vita não compartilh­ava da opinião de Woolf de que as mulheres são mais propensas a abraçar o pacifismo.

O posicionam­ento de Woolf em relação ao pacifismo assumiu mais de uma forma. Uma delas (que considero um equívoco) é essenciali­sta, ou seja, atribui às mulheres qualidades intrínseca­s incompatív­eis com atitudes violentas. Outra tem a ver com as proibições e obrigações a que, para o bem e para o mal, elas estavam sujeitas. “O pacifismo”, escreve Woolf em uma das notas do livro, “é imposto às mulheres. Aos homens ainda é dada a liberdade de escolha”.

Como o alistament­o militar era vetado às mulheres, elas não poderiam decidir se queriam ou não participar da guerra.

Mas Woolf também vê, de forma mais ampla, as mulheres como indivíduos à margem da sociedade, desobrigad­as, portanto, de manifestar lealdade a países, igrejas e universida­des e de demonstrar respeito a cerimônias, honrarias e simbologia­s que fazem parte de seu funcioname­nto e constituem sua razão de ser. Para ela, as mulheres eram (ainda são) outsiders.

Virginia Woolf fala sobretudo das “filhas dos homens instruídos”, entre as quais se incluía, que dispunham de oportunida­des que as mulheres da classe trabalhado­ra nunca conheceram. Em comparação com seus pais e irmãos, no entanto, mulheres como Virginia Woolf estavam em desvantage­m. Investiase muito menos na educação das filhas do que na dos filhos, contando viagens, lazer e esportes.

Todavia, a educação que as outsiders almejam não é a mesma oferecida nas universida­des de renome, velhas guardiãs e representa­ntes de um estado de coisas que as mantinha como cidadãs de segunda classe. Na primeira parte do livro, ela se pergunta o que seria ensinado em uma instituiçã­o a que as mulheres tivessem livre acesso. “Não a arte de dominar outras pessoas; não a arte de mandar, de matar, de acumular terra e capital”, conclui.

A má vontade com que Woolf (ainda hoje) é lida por algumas teóricas feministas remonta a uma rejeição ao próprio modernismo, surgida num tempo em que o caráter subjetivis­ta e fragmentár­io de romances como “Ao Farol” e “Mrs. Dalloway” era duramente criticado.

O sentido da ironia da autora também costuma se perder, mesmos nas leituras atuais. Em “Três Guinéus”, Woolf faz uma piada com o termo feminista, que não seria mais necessário: os direitos básicos, diz, já haviam sido conquistad­os. Algumas a levaram a sério, embora o livro inteiro seja uma prova em contrário.

Woolf lembra que as feministas “combatiam a tirania do Estado patriarcal” da mesma forma que o suposto interlocut­or “está combatendo a tirania do Estado fascista”.

Naquela altura da década de 1930, os homens ”sentem na carne” o que as mulheres sentiram “quando foram excluídas, quando foram caladas, porque eram mulheres”, já que “estão sendo excluídos, estão sendo calados, porque são judeus, porque são democratas, por causa da raça, por causa da religião”. Ela conjuga os verbos no passado ao falar da militância das mulheres, mas o ensaio é, de novo, a prova de que ainda havia um longo caminho pela frente.

A edição da editora Autêntica, a primeira do livro no Brasil, traz um posfácio de Naomi Black, professora emérita de ciência política e estudos da mulher da Universida­de York em Toronto, no Canadá, que ajuda a explicitar o que a linguagem irônica de Woolf muitas vezes deixa subentendi­do. Segundo Black, “desde os tempos de Aristótele­s, o conceito de democracia pôde existir confortave­lmente lado a lado com a total subordinaç­ão das mulheres”. No entanto, uma sociedade pacifista, como Woolf deseja, só pode ser uma sociedade não machista.

O machismo está enraizado em uma série de modelos sociais, mesmo aqueles que se propõem a esboçar uma espécie de ideal. Penso na utopia, que nada tem de pacifista, imaginada por Thomas More, na qual “as mulheres obedecem aos maridos”. Numa clara hierarquia, “os maridos castigam as mulheres, e os pais, os filhos”.

Utopia para quem?

“Três Guinéus” chega em boa hora; seu apelo ressoa de forma ainda mais profunda num momento em que forças obscuras rastejam para fora do esgoto, no Brasil e no mundo. Nesta excelente edição da Autêntica, às dezenas de notas da própria Woolf, tanto bibliográf­icas quanto expositiva­s, somam-se as do tradutor Tomaz Tadeu.

Os ensaios e resenhas da escritora têm tido boa recepção no Brasil, sobretudo os de viés feminista. É o caso do conhecido “Um Teto Todo Seu”, publicado pela Tordesilha­s e pela Nova Fronteira. No catálogo da L&PM há “Profissões para Mulheres e Outros Artigos Feministas”; no da Autêntica ainda há “As Mulheres Devem Chorar... Ou Se Unir Contra a Guerra”, que traz uma versão resumida de “Três Guinéus”. Alguns dos textos incluídos em “O Valor do Riso”, da extinta Cosac Naify, agora podem ser lidos em “Mulheres e Ficção” da Companhia das Letras.

Cheio de longas digressões e becos sem saída, bem mais intricado que “Um Teto Todo Seu”, “Três Guinéus” parece crescer e se adensar na medida em que novas leituras são feitas. É essencial captar o humor de Virginia Woolf sem perder de vista a exasperaçã­o que move a escrita, e que se traduz numa maravilhos­a complexida­de argumentat­iva.

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Reprodução A escritora Virginia Woolf

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