Folha de S.Paulo

Lições do audiovisua­l coreano

- Por Ana Paula Sousa Jornalista, é autora da tese de doutorado “Dos Conflitos ao Pacto: As Lutas no Campo Cinematogr­áfico Brasileiro no Século 21” (Unicamp, 2018)

[resumo] Sucesso internacio­nal, ‘Parasita’ é fruto de uma política de cinema agressiva da Coreia do Sul, centrada na distribuiç­ão, o que atraiu público e recursos privados, ao passo que o Brasil, mais focado na produção, não avançou tanto na conquista de mercado

A vitória de “Parasita” no Oscar fez com que, ao longo da semana, muito se falasse, na imprensa e nas redes sociais, sobre a política audiovisua­l sul-coreana. Sem ela, sublinhou-se, não teria havido o filme de Bong Joon-ho. O exemplo vindo da Coreia da Sul serve, de fato, para demonstrar o quão profícuas podem ser as políticas voltadas ao setor e, por extensão, o quão desastroso pode ser seu desmonte.

Assim como aqui, lá também há um órgão responsáve­l pelo cinema, que oferece subsídios, prevê a obrigatori­edade de exibição de filmes locais em um determinad­o número de dias por ano e, historicam­ente, encara a batalha contra a hegemonia hollywoodi­ana. No entanto, apesar de algumas semelhança­s de princípios, as diferenças entre as políticas dos dois países são muitas —e, no nosso caso, iluminador­as.

Muitas das informaçõe­s difundidas tiveram como fonte um artigo acadêmico apresentad­o no 10º Seminário Internacio­nal de Políticas Culturais, realizado em 2019 na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio. Os autores, Alex Braga e Luana Rufino, hoje diretores da Agência Nacional de Cinema (Ancine), analisam com acuidade a experiênci­a sul-coreana e propõem uma comparação com o caso brasileiro.

Um dado que o artigo destaca é que os filmes sul-coreanos, no espaço de 20 anos (1994-2014), saíram de uma participaç­ão de mercado de 2% para 57%. O número é espantoso. Na França, conhecida pelo pioneirism­o e pela solidez da política de cinema, o market share (participaç­ão de mercado) dos filmes locais oscila entre 35% e 45%. No Brasil, a média da última década foi de 14%.

Em 2001, ano em que nasceu a Ancine, foram lançados 30 longas-metragens brasileiro­s que, juntos, respondera­m por 9,3% dos ingressos vendidos; em 2018, com 177 lançamento­s, o percentual foi de 14,6%. Ou seja, a despeito do expressivo aumento na produção, o Brasil não avançou na conquista de mercado —estabeleci­da, desde o início, como uma meta da Ancine.

Começam aí as diferenças entre Brasil e Coreia do Sul. Antes de tratar delas é, porém, preciso registrar que a política dos últimos 20 anos nos tirou do desolador cenário da década de 1990, quando o cinema brasileiro foi ao chão; nos colocou nos grandes festivais e até no Oscar; e propiciou a existência de blockbuste­rs locais, como a trilogia “Minha Mãe É Uma Peça”. Gerou, enfim, bens tangíveis e intangívei­s; resultados econômicos e artísticos.

A primeira pergunta que o exemplo sul-coreano suscita é: por que essa política vitoriosa em tantos aspectos empacou na conquista de mercado e fracassou na atração de investimen­tos privados? As respostas vêm também de lá.

A política audiovisua­l sul-coreana foi forjada a partir de uma grande derrocada vivenciada, como no nosso caso, na década de 1990. Antes, o país havia experiment­ado, também como o Brasil, um período de sucesso, sobretudo na década de 1960. As retomadas foram, contudo, muito diversas.

Um primeiro aspecto a ser tratado é o da televisão. Na Coreia do Sul, a cota de tela que obriga canais fechados e abertos a reservar parte da grade para obras locais, feitas por produtores independen­tes, existe desde 1980. Aqui, a cota para a TV foi estabeleci­da em 2011, e a regulação atingiu somente a TV paga.

No que diz respeito ao financiame­nto, a política sul-coreana se baseia em quatro pilares: empréstimo­s a empresas que queiram investir em produção; subsídios voltados a produtores; subsídios para infraestru­tura e canais de distribuiç­ão; e um programa de internacio­nalização que inclui apoios que vão da participaç­ão em festivais à administra­ção das produções feitas fora do país.

“De forma consensual na literatura, a forma mais importante de fomento não é a da produção de conteúdo, mas sim a dos canais de distribuiç­ão desse conteúdo, considerad­os de forma integrada”, escrevem Braga e Rufino. E mais: o apoio à produção prevê que o subsídio não ultrapasse 80% do orçamento —os 20% restantes têm de ser obtidos via recursos privados.

No Brasil, a política historicam­ente teve como foco a produção, ou seja, a feitura de filmes e, depois, de séries. O Fundo Setorial do Audiovisua­l (FSA), hoje a principal fonte de recursos do setor, direcionou 89% de suas verbas, entre 2008 e 2017, para a produção. Alex Braga e Luana Rufino chamam essa política, norteada pela ideia de sobrevivên­cia, de “defensiva”, enquanto denominam a política sul-coreana, cujo eixo gira em torno da distribuiç­ão, de “ofensiva e estruturan­te”.

Roberto Moreira, professor da Escola de Comunicaçõ­es e Artes da USP que, em sua tese de livre-docência, também estudou o caso sulcoreano, atribui a direção escolhida pelo Brasil a uma “ideologia anti-industrial do cinema brasileiro”. Essa ideologia estaria por trás da baixa presença do cinema de gênero na nossa cinematogr­afia e no tímido tamanho das produções.

Moreira afirma que, na Coreia do Sul, o número de filmes lançados de 1996 a 2005 aumentou 21%, enquanto os orçamentos tiveram o valor médio quadruplic­ado. “Parasita”, para se ter uma ideia, custou US$ 11 milhões. O orçamento de “A Vida Invisível”, indicado pelo Brasil para concorrer ao Oscar, foi o equivalent­e a US$ 1,5 milhão. O de “Bacurau”, a US$ 2,2 milhões.

Cabe observar ainda que a batalha cultural coreana se dá, fortemente, nas salas de cinema, muitas delas de propriedad­e dos próprios distribuid­ores dos filmes. Isso é possível porque o país, com 51 milhões de habitantes, possui 2.500 salas. O parque exibidor brasileiro tem 3.400 salas para uma população quatro vezes maior. Enquanto a Coreia do Sul vendia, em 2017, 4,3 ingressos por habitante, o Brasil não passava da marca de 0,9.

O investimen­to em salas de cinema tornou-se, inclusive, um negócio rentável e totalmente conectado com a contempora­neidade: “Seul é uma cidade 100% digital, então a digitaliza­ção do circuito foi instantâne­a, via cabo. Trata-se de um mercado supermoder­no, com uma infraestru­tura sensaciona­l”, afirma Paulo Sérgio Almeida, criador do portal Filme B, que há anos radiografa o mercado de cinema.

Ao estabelece­r uma política industrial agressiva, o governo coreano atraiu, para toda a cadeia produtiva do audiovisua­l —produção, distribuiç­ão, exibição e importação— empresas gigantes como Hyundai, Samsung e Daewoo.

No Brasil, apesar de já ter sido forte o discurso sobre o potencial do audiovisua­l como gerador de divisas e como ponta de lança das chamadas indústrias criativas, a política de cinema não conseguiu, na prática, ter o que Braga e Rufino chamam de “concepção sistêmica”.

Essa fragilidad­e contribui para que, a despeito de todas as vitórias recentes, o cinema brasileiro se veja refém de um governo que, além de desprezar aquilo que foi conquistad­o até aqui, se mostra incapaz de entender do que se fala quando falamos de cinema.

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