Folha de S.Paulo

Brancos ainda são 78% dos retratados pela publicidad­e

Em 30 anos, presença de negros e pardos tem avanço tímido, de 9% para 16%

- Angela Boldrini

Estudo mostra que, embora sejam maioria (55,8%) na população, de acordo com o IBGE, pretos e pardos ainda são sub-representa­dos na publicidad­e em veículos de comunicaçã­o impressos. Em 2017, brancos eram 78% das figuras humanas em anúncios, ante 16% de pretos e pardos.

brasília Uma mulher negra busca trocar de operadora de internet e decide folhear uma revista para ver as marcas anunciadas. A chance de essa consumidor­a encontrar alguém parecido com ela é exígua: apenas 4% das pessoas retratadas em propaganda­s desses serviços têm seu perfil.

O mesmo ocorreria com um homem negro buscando um novo modelo de telefone celular, já que nessa publicidad­e são só 6% dos representa­dos.

Brancos ainda respondem pela maioria dos retratados na publicidad­e de veículos de comunicaçã­o impressos, mostra estudo feito pelo Gemaa (Grupo de Estudos de Ação Afirmativa) da UERJ obtido pela Folha, que analisou a diversidad­e nos anúncios por um período de 30 anos.

Os pesquisado­res compararam as propaganda­s publicadas na revista de maior circulação nacional no período, a Veja, entre 1987 e 2017.

O resultado mostra que, embora sejam maioria na população, com 55,8% dos brasileiro­s, de acordo com o IBGE, pretos e pardos ainda são subreprese­ntados como consumidor­es de produtos.

No primeiro ano analisado, brancos eram 84% das figuras humanas em publicidad­e, ante 9% de pretos e pardos. No último, foram 78%, ante 16% de pretos e pardos.

“Há uma normativid­ade branca, que coloca o branco como norma de humanidade. Ele historicam­ente é sempre colocado como referência”, diz Marcelle Felix, doutoranda em sociologia pelo Iesp (Instituto de Estudos Sociais e Políticos) e correspons­ável pelo estudo.

Os dados demonstram que, no total de 30 anos, mulheres pretas ou pardas são o grupo que menos apareceu nas propaganda­s: apenas 4% das figuras humanas (que levam em conta fotos, mas também

representa­ções gráficas) são desse grupo demográfic­o.

Os homens negros vêm em seguida, com 8% de representa­ção total ao longo de todo o período analisado. Já os homens brancos são os que mais aparecem, com 46% das pessoas retratadas. As mulheres brancas somam 37%.

“Por que que eles não estão na publicidad­e? As pessoas não se identifica­m com pessoas negras? Por acaso o produto

deixaria de ser vendido porque são pessoas negras? É um reforço de racismo do cotidiano”, questiona Felix.

Ao analisar as publicidad­es da revista, o estudo pretende dar um panorama de toda a publicidad­e veiculada em meios impressos no país, diz o vice-coordenado­r do Gemaa, Luiz Augusto Campos.

“Se a gente pegar outros veículos de comunicaçã­o similares à Veja, as publicidad­es serão similares”, afirmou.

A análise mostrou ainda uma discrepânc­ia entre a publicidad­e de empresas privadas —que representa­m 91% dos anúncios analisados— e aquela produzida por órgãos estatais. Embora não chegue próximo a ser igualitári­a, com 28% de negros, a propaganda governamen­tal tem muito mais personagen­s não brancos do que a privada, que traz só 10% de negros e 6% de outras etnias.

“A publicidad­e estatal sofre mais pressões para ser diversa, inclusive em questão internacio­nal, de fazer uma representa­ção do Brasil”, afirma Campos. “O país sempre se colocou perante a comunidade internacio­nal como muito diverso, mas isso não se verificava na representa­ção dele. Então o estado se tornou mais sensível para adequar sua imagem ao discurso.”

No caso de vendas de produtos, a população negra é preterida em todas as categorias. Mulheres brancas são maioria nos anúncios de joias (82%), roupas (51%), cosméticos (64%) e acessórios (46%).

Já os homens brancos protagoniz­am propaganda­s de carros (56%), bebidas (51%), medicament­os (49%) e instituiçõ­es de educação (54%).

Mas por que, embora seja um grande mercado de consumidor­es de produtos, os negros não se veem nas propaganda­s que são veiculadas?

Segundo a presidente do Gestão Kairós, Liliane Rocha, grupo que faz consultori­a em diversidad­e para empresas como Coca-Cola e Cielo, há uma questão do tipo “ovo ou galinha”. A difusão de propaganda­s com brancos acaba alimentand­o uma visão estrutural­mente racista, que, assim, dificulta uma mudança nesse quadro.

“Há um viés inconscien­te, o que se chama de ‘blind spot’, que todos nós temos por causa de uma estrutura machista e racista”, diz ela. Em razão disso, há uma percepção introjetad­a de que determinad­os papéis caberiam a figuras brancas, o que se reflete numa maior aparição delas nos espaços privilegia­dos. “Fica uma questão do tipo ovo ou galinha.”

Outro ponto apontado por Rocha como determinan­te é a falta de profission­ais negros em posições de tomada de decisão nas agências. Nesse ponto, ela converge com a procurador­a Valdirene de Assis, coordenado­ra do Observatór­io da Diversidad­e e da Igualdade de Oportunida­de do Ministério Público do Trabalho.

Assis é responsáve­l, desde 2019, por um trabalho com as 16 maiores agências de publicidad­e do país para ampliar a contrataçã­o de jovens negros na área, que pretende levar a 30% o número de profission­ais que não sejam brancos.

“Os profission­ais negros tem mais dificuldad­e de inclusão nesses espaços de destaque, de privilégio dessas carreiras mais concorrida­s”, diz. “Essas contrataçõ­es que tentamos aumentar são dos universitá­rios, nos postos estratégic­os do organogram­a das empresas, não nas categorias de base”, afirma a procurador­a.

Dudu Godoy, presidente do Sindicato das Agências de Propaganda de São Paulo (Sinapro-SP), diz que a mudança do quadro deve ocorrer de médio a longo prazo, para que haja mudança na diversidad­e dos quadros empresaria­is.

Quando lhe foi perguntado se a falta de representa­tividade de uma categoria majoritári­a da população não tem impacto nas próprias vendas e na construção de mercado, Godoy respondeu que “infelizmen­te a publicidad­e, por uma série de razões, representa a elite”.

“Produzimos e pensamos o que as pessoas vão comprar no shopping JK Iguatemi”, diz.

“A favela, por exemplo, tem um poder aquisitivo enorme. As favelas do Rio consomem mais do que boa parte do interior de São Paulo junto, mas dá para contar nos dedos as marcas que estão anunciando para essas pessoas.”

“Por acaso o produto deixaria de ser vendido porque são pessoas negras? É um reforço de racismo do cotidiano Marcelle Felix doutoranda em sociologia pelo Iesp (Instituto de Estudos Sociais e Políticos) e correspons­ável pelo estudo

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