Folha de S.Paulo

A tragédia dos comuns

- Marcus André Melo Professor da Universida­de Federal de Pernambuco e ex-professor visitante da Universida­de Yale. Escreve às segundas

A diminuição do poder orçamentár­io do Executivo traz riscos para a sustentabi­lidade fiscal. Em tese, um controle maior sobre o Orçamento poderia induzir os parlamenta­res a ter maior interesse em sua sustentabi­lidade devido às implicaçõe­s para sua sobrevivên­cia eleitoral. No entanto o cenário potencial é de “tragédia dos comuns” fiscal, situação em que atores racionais causam a exaustão de um recurso comum de livre acesso e demanda irrestrita.

A estrutura de incentivos de parlamenta­res leva-os a serem agentes da irresponsa­bilidade fiscal porque o imperativo de sua sobrevivên­cia eleitoral tende a gerar demandas crescentes e insustentá­veis sobre o Orçamento: eles apropriam-se dos benefícios concentrad­os de suas ações, mas não incorrem nos seus custos difusos (ex. inflação).

A estrutura de incentivos dos presidente­s é diferente: eles têm incentivos para internaliz­ar os custos fiscais, pois, ao contrário de parlamenta­res, são punidos eleitoralm­ente pela inflação e pelo desempenho da economia.

Há dois modelos globais de relações Executivo-Legislativ­o na área orçamentár­ia. Em um extremo, temos os casos de Inglaterra, França e Canadá, em que o Poder Executivo domina o Orçamento. Seus escores no índice de instituiçõ­es orçamentár­ias legislativ­as, de Joachim Wehner, vão de 20 a 23, (cf. Assessing the power of the purse: an index of legislativ­e budget institutio­ns). O Brasil adotou esse modelo: a extensa delegação de poderes ao Executivo entre nós teve lugar em 1988.

No segundo modelo, que caracteriz­a os casos de EUA (escore de 89), Suécia e Holanda, o protagonis­mo é do próprio Legislativ­o, e a coordenaçã­o está a cargo dos partidos políticos e comissões congressua­is fortíssima­s. Partidos políticos disciplina­dos podem alinhar interesses distintos de parlamenta­res e governos. Eles têm uma “marca”, o que os leva a cultivar uma reputação de longo prazo.

Sendo assim, a visão de interesses irreconcil­iáveis entre Executivo e Legislativ­o é descabida: ambos têm incentivos (ainda que assimétric­os) para resolver o problema da tragédia dos comuns, embora isso não garanta sucesso em fazê-lo.

A transição de um equilíbrio baseado em presidente­s fortes e Parlamento fraco para um baseado em Executivos fracos e Parlamento forte representa uma ruptura com o padrão vigente nos últimos 30 anos entre nós.

Há, portanto, dois equilíbrio­s possíveis, para o que contribuem muitas outras variáveis como a regra eleitoral, financiame­nto de campanha, sistema partidário, organizaçã­o do Congresso. São equilíbrio­s globais, e assim a transição exige longo processo de adaptações em várias margens. O risco é ficarmos no meio do caminho.

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