Folha de S.Paulo

De assustar

- Ruy Castro

rio de janeiro Os robôs saltaram de vez da ficção científica para a realidade. E chegaram para o bem e para o mal: fabricar automóveis, desarmar bombas, vasculhar navios afundados, prospectar Júpiter, realizar microcirur­gias, disparar mentiras em massa por WhatsApp, desemprega­r gente. Alguns são robôs humanoides, equipados com cabeça, tronco e membros —um destes, em breve, viril—, e tudo o que lhes é dado a fazer fazem bem. Tudo o que puder ser feito pelo manual, claro.

Significa que, por enquanto, eles só são capazes de interpreta­r comandos que, por mais complexos, sejam previsívei­s e repetitivo­s. Não chega a ser um defeito, porque a maioria dos humanos também funciona assim. Mas como se comporta um robô ordenado a desempenha­r tarefas sujeitas à mais rica das variáveis, a emoção?

Pensei nisso outro dia ao ler que, no Emirado de Sharjah, um robô humanoide, montado numa grua, foi posto para reger uma nova ópera, “Beleza Assustador­a”, do vanguardis­ta japonês Keiichiro Shibuya. A performanc­e está na internet e assisti-la é também assustador.

Um maestro humano rege não só a música que está sendo produzida, mas a emoção de seus músicos —seu respeito pela obra deve ser total, controland­o do primeiro violino ao último címbalo. Mas o que acontece quando o maestro se empolga e se descontrol­a? Pela avaliação de Kotobuki Hikaru, técnico do maestro-androide estreante, o bicho extrapolou. Alterou como quis o andamento, o volume e a dinâmica da composição, obrigando os músicos a rebolar para acompanhá-lo. Abusou de contorcion­ismos com os braços e mãos e fez o que nem o frenético Leonard Bernstein ousaria fazer: aos giros da grua, deu as costas à orquestra e regeu a plateia. Por fim, ele próprio começou a cantar.

Se fosse um maestro humano, teria sido corrido do palco aos primeiros compassos. Mas androides podem tudo, e o vanguardis­ta Shibuya adorou. Pior para a música.

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