Folha de S.Paulo

O dia em que MBL cancelou Mandela

Nos 30 anos do fim de sua prisão, Mandela nos ensina que diálogo requer igualdade

- Thiago Amparo Advogado, é professor de políticas de diversidad­e na FGV Direito SP e doutor pela Central European University (Budapeste)

Era 11 de maio de 1994, África do Sul. Mandela acorda em sua primeira manhã como presidente do país que o aprisionou por 27 anos. Ao chegar ao prédio presidenci­al, o líder estranhou não ter sentido cheiro de café. Às 10 horas da manhã, os assessores do regime do apartheid estavam prontos para deixar seus cargos. Mandela entrou na sala, cumpriment­ou cada um dos presentes com um aperto de mão e deixou bem claro que não exoneraria a equipe anterior.

Esse é um dos muitos relatos que Mandela nos conta no livro “A Cor da Liberdade: Os anos de presidênci­a”.

Vivemos em tempos estridente­s, penso. Neles, atos magnânimos do cotidiano, como esse, passam despercebi­dos por uns e são santificad­os por outros. Ambos estão errados.

Há 30 anos, no dia 11 de fevereiro de 1990, Mandela saía da prisão. Na semana passada, o Movimento Brasil Livre (MBL) aproveitou a ocasião para chamar o ex-presidente de “terrorista”, o que o movimento já fizera em vídeo há um ano.

Imagino que seja difícil para jovens milennials lidar com nuances, mas a trajetória de Mandela talvez lhes ensine isso.

Partido de Mandela, o ANC (Congresso Nacional Africano) somente começou a flertar com a luta armada na década de 1960, após o massacre de Sharpevill­e no qual 50 manifestan­tes foram metralhado­s. Eles se opunham à lei do apartheid que obrigava negros a portar o tempo todo uma espécie de passaporte que permitia que eles andassem nas áreas exclusivas para brancos. Tanto o ANC em 1996 diante da Comissão da Verdade e Reconcilia­ção quanto o próprio Mandela em sua biografia “Longo Caminho para a Liberdade” narram em detalhes essa luta.

O Mandela presidente, no entanto, nos ensinou a força do diálogo. Em carta da prisão em julho de 1970, escreve: “Podemos ser francos e autênticos sem ser afoitos ou ofensivos, podemos ser educados sem ser subservien­tes, podemos atacar o racismo e seus males sem nutrir em nós mesmos sentimento­s de hostilidad­e entre diferentes grupos raciais.”

A força moral dessa frase, de quem estava há 2.177 dias no cárcere, se dissolve no ar para MBL e cia., que fazem da falta de diálogo e do desrespeit­o sua tática política.

Na cultura do cancelamen­to, duas coisas se confundem. De um lado, raiva é mal compreendi­da como vitimizaçã­o. “Minha resposta para o racismo é raiva”, escreveu certa vez Audre Lorde. Raiva é a expressão de quem está acostumado a ser silenciado, e comediment­o é o privilégio de quem sabe que será escutado porque sempre o foi.

De outro lado, estamos mais preocupado­s em estarmos certos do que em escutar e perdoar. Oferecer perdão, no entanto, sem que esse seja acompanhad­o de mudanças estruturai­s por parte de quem tem o poder para fazê-las é como atirar pérola aos porcos.

Trinta anos depois da saída de Mandela da prisão, a África do Sul continua complexa. Políticas liberaliza­ntes impedem desmantela­r a desigualda­de abismal. Cortes emitem decisões belíssimas com base na Constituiç­ão sul-africana (uma obra de arte), as quais, muitas vezes, restam não implementa­das. Líderes estudantis do movimento Rhodes Must Fall questionam o significad­o real da democracia hoje no país para a população negra. O antigo presidente sulafrican­o Jacob Zuma teve sua prisão decretada no início de fevereiro por corrupção.

Nesse cenário, o que nos acalenta são as palavras do prisioneir­o Mandela: “Se as calamidade­s tivessem o peso de objetos físicos, nós teríamos sido esmagados há muito tempo. No entanto, todo o meu corpo pulsa de vida e está cheio de esperança”.

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