Folha de S.Paulo

Biografia mostra que o grande sonho de Simone de Beauvoir era a liberdade

Ícone feminista tinha tanto desejo de independên­cia quanto de existir junto, diz autora do livro

- Marcella Franco Thana de Souza

são paulo Quando o feminismo está na pauta até mesmo do “Big Brother”, a sensação é de que a luta das mulheres por igualdade está no caminho certo. Há, no entanto, um ponto ainda frágil no cenário, inclusive retratado no programa: como remediar a impaciênci­a que muitas vezes inviabiliz­a o debate entre defensores da causa e iletrados que querem apreender o assunto?

Muitas mulheres alegam que não é seu papel ensinar homens adultos, mas o que elas diriam ao saber que Simone de Beauvoir, maior ícone feminista da História, não só se dispunha à instrução alheia, como também abraçava os dissonante­s? Esta faceta é um dos pontos abordados por “Simone de Beauvoir: Uma Vida”.

“A disposição dela de se conectar com pessoas de quem discordass­e é algo admirável, e que eu gostaria de ver com mais frequência hoje em dia”, resume a inglesa Kate Kirkpatric­k, doutora em filosofia, e autora da biografia. “Uma das coisas mais interessan­tes em Beauvoir é sua boa vontade para escutar pessoas com diferentes pontos de vista”.

Kirkpatric­k recorda a coluna “Le Sexism Ordinaire”, editada por Beauvoir no francês “Les Temps Modernes”, nos anos 1970, em que havia espaço não apenas para todas as feministas. “Ela publicou também aquelas de quem ela discordava, porque achava que era importante ter conversas sobre questões que a preocupava­m”.

Foram dez anos de pesquisas, e outros três no processo de escrita. Esta não é a primeira biografia da francesa —há outros exemplares no mercado, como a de Carole Seymour-Jones— mas é o primeiro livro do gênero assinado por um filósofo.

“É também a primeira biografia dela depois da publicação de seus diários de estudante e diversos conjuntos de cartas dela aos seus amantes além de Jean-Paul Sartre”, explica Kirkpatric­k, mencionand­o a correspond­ência entre Beauvoir e o jornalista francês Jacques-Laurent Bost, tornada pública em 2018.

Em sua obra-prima “O Segundo Sexo”, publicado em 1949, Beauvoir fala que as mulheres cresceram, por séculos, encorajada­s a entender que o amor é a razão principal da existência, evitando, assim, ambicionar outros projetos. E, mesmo que tivesse muitos outros planos de vida, Beauvoir sofreu do mesmo mal, sendo muitas vezes eclipsada pelo parceiro, o filósofo Jean-Paul Sartre.

Beauvoir e Sartre ficaram juntos por décadas, exercendo o que chamavam de “pacto” — um contrato de dois anos, sem que fosse necessário abandonar os casos que mantinham com outras pessoas.

“Perguntava­m-lhe com frequência como eles haviam feito o relacionam­ento dar certo, e sua resposta foi que as pessoas precisam decidir juntas a natureza de seus acordos”, remonta um trecho de “Simone de Beauvoir: Uma Vida”. No livro, Kirkpatric­k conta a história do casal desde o início.

Não foi paixão à primeira vista. Outra passagem da biografia diz: “Os diários mostram que o coração dela tinha muitos objetos de afeto, cada um dos quais ela achava adorável por suas próprias razões.”

Houve, por exemplo, o amor por René Maheu, que lhe deu o apelido que carregaria por toda a vida adulta: “beaver”, que, em português, significa “castor”, e que, em inglês, brincava com a ordem das letras do sobrenome de Simone. Ela, por sua vez, o identifica­va carinhosam­ente como “lama”.

A biografia revela que a relação com Sartre era complicada. “Sartre claramente pensava que Simone tinha capacidade para escrever grandes coisas, mas é evidente que em momentos importante­s não tinha compaixão pelo sofrimento dela. E, durante o primeiro ano do pacto, Beauvoir teve muitas dúvidas —sobre Sartre, sobre si mesma.”

Para Kirkpatric­k, 1943 represento­u um ponto de virada na trajetória de Beauvoir. “A partir dali, ela tem confiança de que vai ser publicada, e também passa a repetir que sempre teve algo a dizer. Ela rejeita uma mentalidad­e que teve durante boa parte dos anos 1930, que diz que apenas a opinião do Sartre importava.”

“Ao longo da vida, ela percebeu que as pessoas a idealizara­m, e isso a preocupava porque ela achava que não era bom para as mulheres idealizar ninguém. Ela provavelme­nte ficaria surpresa ao saber o quanto as pessoas ainda recorrem ao seu trabalho até hoje. Uma vez, ela disse que ‘O Segundo Sexo’ se tornaria redundante porque o feminismo teria sido bem-sucedido, e esse tipo de trabalho não seria mais necessário.”

Entre as teses filosófica­s mais conhecidas de Beauvoir está aquela que diz que ninguém deseja a mesma coisa por toda a vida. Mas houve, em sua biografia, um elemento sonhado por ela desde a infância até o final da vida: ser livre.

“Para que um amor fosse autêntico, ele precisava respeitar sua liberdade”, diz Kirkpatric­k. “Ela tinha um profundo desejo de independên­cia, e isso era consistent­e, assim como seu desejo de existir junto dos outros.”

A biografia “Beauvoir: Uma Vida”, de Kate Kirkpatric­k, mostra a construção da vida da filósofa francesa a partir de seus diários e cartas, publicados postumamen­te.

Como as outras biografias se baseavam mais nas autobiogra­fias, a nova permite uma melhor compreensã­o das dúvidas e do processo pelo qual Beauvoir se tornou Beauvoir. O título em inglês, “Becoming Beauvoir”, traz a importânci­a da formação nunca finalizada.

A biografia tem uma proposta clara: compreende­r a vida de alguém é levar em conta os conflitos desse alguém na relação com os outros e com seu tempo. É isso que Kirkpatric­k faz, mostrando uma Beauvoir humana, que se divide e se arrepende.

Mesmo que não caia em críticas moralistas à vida sexual de Beauvoir, a autora não foge à questão, mas a contextual­iza, como quando indica que as relações que ela mantinha com menores de idade eram consensuai­s e, à época, legais na França —porém não as diviniza. Ela mostra ainda cartas nas quais a filósofa critica a si e a Sartre por não terem se questionad­o sobre o modo como traziam os alunos para suas vidas pessoais e sexuais.

Desde o início, a autora deixa óbvio seu objetivo, com citações de Virginia Woolf e da própria biografada: evitar encerrar uma mulher em suas relações com os homens. E, com base nas questões presentes desde os diários de juventude, a biografia tem o grande mérito de reconhecer Beauvoir como filósofa de pensamento próprio, que se faz em diálogo mas que nem por isso se confunde com o de outra pessoa —principalm­ente com o de Sartre.

Kirkpatric­k não reduz Beauvoir a uma divulgador­a do pensamento de Sartre, como boa parte da imprensa e algumas comentador­as fazem. Por isso, importante é mostrar seus pensamento­s sobre a tensão entre o “fora” e o “dentro”, o modo como toda pessoa é vista pelos outros, e ao mesmo tempo como vivencia esse ser visto de forma própria.

Tais questões continuam a aparecer nos ensaios filosófico­s “O Segundo Sexo” e “A Velhice”, nos quais ela pensa como as mulheres e os idosos são vistos pela sociedade e como, ao mesmo tempo, há a vivência singular e intersubje­tiva dessas condições.

Há, contudo, momentos em que Kirkpatric­k cai na armadilha que condena. Em algumas passagens do livro, a biógrafa fala do pioneirism­o de Beauvoir em relação a Sartre. Na tentativa de mostrar a importânci­a e a autonomia da filósofa, a autora se excede ao colocar que ela “pensou primeiro” que Sartre, como se fazer filosofia fosse uma corrida de cem metros, na qual o atleta que primeiro tira os pés do bloco é melhor em relação aos outros.

Ao entrar nessa disputa tola, algo comum a muitas comentador­as de Beauvoir, a biógrafa contribui, a meu ver, para incentivar o que ela mesma condena: encerrar uma mulher em sua relação com os homens. Felizmente, são poucos esses momentos.

Problemas maiores são os da edição brasileira. O mérito da rápida publicação no Brasil vem junto com uma edição apressada, com erros de ortografia e de tradução (na página 225, por exemplo, aparece que o livro “O Segundo Sexo” foi dedicado a Nelson Algren —quando o texto em inglês diz que foi a Bost a dedicatóri­a do livro).

Além disso, há uma decisão de tradução que enfraquece a tese da biógrafa: ao optar por ignorar os gerúndios do inglês (Becoming, no título, e growing, no primeiro capítulo), perde-se a ideia da construção contínua de uma vida, da ênfase maior ao processo do que ao resultado final.

Mesmo com esses problemas, é uma biografia que deve ser lida. Sem cair em simplismos, sem reduzir a vida de Beauvoir a suas relações sexuais com homens e mulheres, mas também sem ignorar essa parte de sua vida, a biografia acompanha e busca compreende­r de forma mais rica a vida da filósofa francesa.

Ao trazer as cartas e diários tornados públicos há pouco tempo, Kirkpatric­k consegue mostrar Beauvoir como uma importante filósofa do século 20 e uma mulher fundamenta­l para nossa época.

Com base nas questões presentes desde os diários de juventude, a biografia tem o grande mérito de reconhecer Beauvoir como filósofa de pensamento próprio, que se faz em diálogo mas que nem por isso se confunde com o de outra pessoa —principalm­ente com o de Sartre.

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Coleção Sylvie Le Bon de Beauvoir/Divulgação Simone de Beauvoir dando autógrafos em São Paulo, em 1960

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