Folha de S.Paulo

O menor Carnaval da Terra

- Chico Felitti

As pessoas não param de morrer para festejar. O que é uma pena para muitos médicos, mas não para a dra. Ana Luísa Sá Makhlouf. Dos 38 Carnavais que passou neste mundo, ela pulou um. Arrastada pelos pais e enfiada em uma fantasia de odalisca, que já achava ridícula aos seis anos de idade.

Ela se sente confortáve­l dentro de outra fantasia: um jaleco branco com o seu nome bordado no peito, o brasão da Universida­de de São Paulo em um braço e o logotipo do Incor do outro. Essa é a fantasia que ela usa todos os dias do ano, e quer usar por todos os anos que viver.

Quando chega à UTI cardiológi­ca do Incor, no quarto andar do hospital, Ana Luísa Sá Makhlouf ainda tem cheiro de cama. Uma enfermeira a recebe com um abraço: “Doutora

Ana Luísa. Cada dia mais magra”, a mulher diz. “E mais despentead­a”, completa com um deboche reservado aos amigos. A médica ri: “Oi, Cida”, e bota uma máscara cirúrgica sobre o rosto.

No canto da UTI há um paredão branco cobrindo a parede branca. São quatro jovens. Os residentes do primeiro ano, Ana Luísa se lembra. Começa hoje a residência dos intensivis­tas. Ela os cumpriment­a com um meneio de cabeça. Eles acenam. As máscaras de papel escondem rostos que mais parecem máscaras de mau humor.

“De quem foi a ideia de trabalhar no Carnaval?”, perguntari­a um deles, se a resposta não fosse óbvia: da professora doutora Ana Luísa Sá Makhlouf, a médica que nunca dorme.

A chefe da UTI começa a ronda matinal dos leitos. Pega a prancheta que fica encaixada sobre a cabeceira da cama da primeira paciente, de um corredor de oito pessoas. Ela lê didaticame­nte: “A paciente Isabel Lins produziu uma tempestade elétrica nesta madrugada.”

Os alunos anotam nos seus celulares. Ana Luísa continua: “O que fazer no caso de uma taquicardi­a ventricula­r não sustentada que evolui para uma tempestade elétrica?”

“Cardiovers­ão elétrica?”, pergunta uma jovem com sotaque de Recife. “Antiarrítm­ico intravenal”, afirma sem uma sílaba de dúvida um homem com sotaque carioca.

A professora continua correndo com os dedos no prontuário. “Cardiovers­ão elétrica”, ela dá a vitória para a aluna com sotaque do Recife, sem alterar o tom de voz. “Reverteram a arritmia às 4h12. E hoje vamos testar uma nova combinação de antiarrítm­icos.”

A médica segue para o próximo leito, com os residentes em uma órbita tímida ao seu redor, como se ela fosse um sol em miniatura. Em que momento ela continuou chamando os pacientes pelo nome e sobrenome, como forma de demonstrar respeito por um ser humano, mas deixou de olhá-los no rosto?

“O paciente Antonio José da Silva sofre de cardiomiop­atia congênita, com aumento do músculo. Função de ejeção de 39% e…”

Alguém murmura algo. Ana Luisa Sá Makhlouf levanta o rosto do papel e procura uma boca aberta no rosto dos residentes. Mas só encontra os oito olhos dos aprendizes fixados em um ponto. No leito da UTI. É o paciente que, apesar dos fios que o ligavam à cama, falou algo. Ana Luisa olha para ele. “Perdão?”

“É Rrrarnaval.” A voz vem de um lugar profundo, não do pulmão. É como se ele emprestass­e todos os órgãos para fazer a pergunta.

A médica olha para ele como se tivesse encontrado uma doença inédita, o prontuário esquecido na mão esquerda.

A enfermeira Cida surge atrás do seu ombro, e sussurra: “Aqui não tem TV, doutora, fica difícil de saber o dia”. Até a visita cruel do tempo é proibida numa UTI.

“É rrranavaaa­l hohi.” É Carnaval hoje, ele pergunta. Ou talvez ele avise. A médica fica paralisada. A sala branca fica imóvel por um segundo. Por dois segundos. Por três segundos.

Um residente, cuja voz até então era inédita, começa a cantar baixinho: “Explode cora-ção, na maior fe-li-ci-da-de”.

Os alunos respondem. Uma mexe os dedos. Outro, faz a segunda voz —ou o segundo sussurro. E os residentes chacoalham com uma alegria que vem de fábrica. Um, que cresceu nas ruas de Olinda, arrisca um samba no Crocs branco, o que cria uma cuíca improvisad­a com o piso plástico do hospital.

O paciente Antonio José da Silva ri. Até a gelatina roxa, abandonada na bandeja plástica ao lado da cama, parece sambar.

“Sim, hoje é terça-feira de Carnaval”, a médica responde ao paciente. E sorri debaixo da máscara.

Esse momento não vai entrar para o prontuário de Antonio José da Silva. Mas vai entrar para a memória dele. E para a memória de meia dúzia de pessoas.

Assim se celebrou o menor Carnaval da Terra.

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Bruna Barros

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