Folha de S.Paulo

Mais feminicídi­os

Como era previsível, fixação de penas maiores não inibiu esse crime; certeza da punição importa mais

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Sobre avanço desse tipo de crime no ano passado.

Levantamen­to desta Folha mostrou que ocorreram no ano passado 1.310 assassinat­os decorrente­s de violência doméstica ou motivados pela condição de gênero, caracterís­ticas do feminicídi­o. A alta de 7,2% ante 2018 está em franco contraste com o recuo geral da criminalid­ade e da violência no Brasil.

Dados compilados pelo Ministério da Justiça de janeiro a setembro de 2019 indicam, por exemplo, uma diminuição de 22% nos homicídios dolosos e latrocínio­s (roubo seguido de morte), acentuando a tendência iniciada no ano anterior. Como explicar, então, que o feminicídi­o esteja em progressão?

Até aqui predominav­a a interpreta­ção de que o avanço desse ato extremo de covardia machista decorria da tipificaçã­o inovadora, incluída na legislação em 2015. O feminicídi­o, desde então, saiu da punição genérica para homicídio (de 6 a 20 anos de reclusão) para a pena qualificad­a de 12 a 30 anos.

Segundo tal explicação, seria natural que subisse gradualmen­te o número de inquéritos e condenaçõe­s categoriza­das pelo novo tipo penal. Por esse ângulo, o incremento não passaria de um artefato, resultante não de salto na quantidade de mulheres mortas por maridos, companheir­os, parentes ou conhecidos, como de hábito em tais crimes, mas do número crescente de notificaçõ­es.

Há indicações, entretanto, de que o aumento seja real. Em 2018 já se haviam registrado mais casos de estupros e de lesões corporais decorrente­s de violência doméstica. Faz sentido, assim, depreender que haja de fato uma trajetória ascendente desses ataques.

Constata-se, portanto, que a introdução do feminicídi­o como qualificad­or de homicídios e concomitan­te agravament­o da pena não teve, infelizmen­te, o condão de coibir a classe bárbara de crimes. Como se anotou neste espaço à época da mudança, a minúcia crescente da lei não é garantia de que, na prática, a justiça seja feita.

Como em todos os delitos, mais importante que o tamanho da pena, para obter efeito dissuasóri­o, é a certeza do castigo. E esta depende da eficiência da atividade policial, na prevenção como na investigaç­ão, e da presteza do Judiciário —nenhuma das quais progredirá só com o endurecime­nto da lei.

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