Folha de S.Paulo

Fica, Carnaval!

Razões para se preocupar não faltam, mas, por favor, só a partir de quarta-feira

- Joel Pinheiro da Fonseca Economista, mestre em filosofia pela USP

Nestes tempos, ter quatro dias distantes das preocupaçõ­es econômicas e da briga política deveria ser um direito humano básico. Confesso que senti um certo prazer de ver as notícias na segunda-feira (24), constatar que as bolsas do mundo todo estão em queda livre graças à epidemia do coronavíru­s e, mesmo assim, sentir que aquilo não me diz respeito; pelo menos até quarta-feira (26).

A civilizaçã­o exige a limitação dos prazeres e a organizaçã­o para objetivos de longo prazo. Mas qual é o sentido de se viver num mundo em que apenas a lógica da produção e do planejamen­to importam, e em que as paixões sejam cada vez mais domadas? A vida também precisa ser aproveitad­a, e de preferênci­a antes da distante aposentado­ria.

De uns anos para cá, como forma de compensar os custos da civilizaçã­o, vimos dando vazão justo ao lado mais sombrio de nossas paixões: ao desejo de morte e dominação, entregando cada vez mais espaço de nossas almas à mentalidad­e de guerra, da distinção amigo-inimigo, que é a lógica que leva ao totalitari­smo. O real antídoto da violência de extrema direita, contudo, não é a polarizaçã­o para a esquerda, e sim a subversão dessa lógica: a possibilid­ade da convivênci­a alegre e despreocup­ada entre todos, independen­temente da identidade de cada um. Em suma, um pouco de Carnaval.

É claro que, num mundo que força a politizar todo e qualquer ato (da escolha da roupa ao filme que assistimos), cavar um espaço para a convivênci­a e para o prazer sem sentido político direto é, no final das contas, também um ato político. Note aí o “também”: a política entra como acidente, jamais como motivação principal. Se a festa popular se transforma em “luta” por qualquer causa que seja —mesmo uma causa boa e meritória—, deixa de ser festa. É bonito ver um Jesus favelado no desfile da Sapucaí. Assim como é renovador zoar em gritos de guerra as lideranças políticas que parecem odiar a própria existência do prazer. Mas se as “causas” tomarem a dianteira, a real causa de estarmos ali deixa de existir. Carnaval não é nem pode ser passeata. Nesse sentido, que bom constatar que a patrulha das fantasias não pegou para valer.

É claro que o sossego de uns é a oportunida­de de outros. Enquanto pulávamos na avenida ou descansáva­mos na rede, o BNDES decidiu liberar empréstimo­s para produtores rurais cujo Cadastro Ambiental Rural (CAR) ainda esteja pendente. A invasão de terras indígenas pelo garimpo aumentou 91% no ano passado; o desmatamen­to da Amazônia, 29,5%. A catástrofe do clima que nada fazemos para evitar promete ser especialme­nte severa no Brasil. Sem falar na destruição das enchentes nas grandes cidades.

Com as bolsas desabando, nossa perspectiv­a econômica para o ano piora, aumentando no governo a tentação de uma guinada populista também na economia. Isso para não falar das forças policiais rebeldes que fazem das vidas dos cidadãos moeda de troca do corporativ­ismo miliciano, tudo com apoio tácito da Presidênci­a. E se o coronavíru­s nos pegar em cheio? O pesadelo bate à porta. Razões para se preocupar, para lutar e para planejar não faltam. Mas, por favor, só a partir de quarta-feira. Ou quinta. Ou melhor: segunda de semana que vem, que ninguém é de ferro! No mundo inteiro, a luta pelo poder em sua pior faceta dá as cartas. O Brasil ainda tem o privilégio de sonhar que ela não tem a palavra final.

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