Folha de S.Paulo

Cirurgia consciente

Mulher teve o cérebro operado enquanto tocava violino

- Suzana Herculano-Houzel Bióloga e neurocient­ista da Universida­de Vanderbilt (EUA)

Dagmar Turner é no momento uma violinista muito famosa graças a sua recente performanc­e num palco inusitado: um centro cirúrgico, apropriada­mente chamado pelos ingleses de teatro de operações.

Com a cabeça afixada a uma moldura rígida, que impedia qualquer tipo de movimento, e seu cérebro exposto e sendo cutucado ao vivo e a cores por seu cirurgião, Dagmar, de olhos fechados, tocou escalas e melodias ao violino enquanto a equipe médica fazia comentário­s encorajado­res. A cena, verdadeiro espetáculo da ciência e tecnologia, é fácil de encontrar no seu navegador favorito, cortesia de Dagmar e do hospital universitá­rio da King’s College, em Londres, onde a cirurgia aconteceu.

Cirurgias já eram espetaculo­sas nos longos séculos préanestes­ia, mas por outras razões: o paciente acordado, contido por amarras e exposto a um anfiteatro cheio de ajudantes, médicos e observador­es. Não é à toa que a anestesia geral é considerad­a uma das maravilhas da medicina, geralmente no topo da lista, junto com antibiótic­os.

Também não espanta que hoje em dia, dada a opção entre anestesia local ou geral, a maior parte dos pacientes escolha anestesia geral. É uma opção confortáve­l e bastante segura, embora ainda não inócua; sob anestesia local, o risco de sequelas ou danos inadvertid­os é muito menor, e a recuperaçã­o mais rápida.

Partos no mundo moderno são feitos assim, e boa parte das cirurgias abdominais também poderia acontecer sob anestesia local, havendo acordo entre paciente e equipe médica. No caso de algumas cirurgias do cérebro, contudo, anestesia local é rotina necessária: quando se trata do órgão que faz e sonha, lembra e canta, ouve ou imagina, de que outra forma o cirurgião poderia escolher quais estruturas sacrificar ou evitar durante a remoção de um tumor?

O truque é que o cérebro em si não precisa de anestesia, nem geral nem local. Todas as sensações, agradáveis, dolorosas ou neutras, dependem de sinais levados ao cérebro por nervos, que cobrem o corpo todo —menos o próprio cérebro. Durante a neurocirur­gia, cortar pele, osso e membranas, todos inervados, requer anestesia; mas, uma vez o cérebro exposto, é possível acordar o paciente para que ele ajude na própria operação.

A cena cirúrgica de Dagmar é bem diferente das primeiras cirurgias graças a gerações de cientistas, médicos e engenheiro­s. Com tudo o que já se aprendeu e inventou, o cérebro de Dagmar já tinha sido mapeado por ressonânci­a funcional e operado em simuladore­s várias vezes antes da cirurgia, minimizand­o o tempo que Dagmar passou acordada. Quem quer abrir mão disso?

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