Folha de S.Paulo

A arte da guerra

Os artefatos nos museus do Ocidente devem ser devolvidos às terras de origem?

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

Quem rouba deve devolver o roubo. Há premissas morais que são cristalina­s. Se os nazistas roubaram arte em abundância (e roubaram), essas obras devem ser devolvidas aos proprietár­ios.

O mesmo vale para a pilhagem soviética, de que se fala menos, mas que aconteceu em proporções gigantesca­s.

Mas será que podemos aplicar igual raciocínio às estátuas de mármore do Parthenon que estão no Museu Britânico, em Londres?

A polêmica está instalada: nas negociaçõe­s pós-brexit entre a União Europeia e o Reino Unido, a república helênica exige que as famosas figuras retornem à Grécia.

Não é pretensão original. Desde 1832, quando o país se tornou independen­te dos turcos otomanos, as autoridade­s de Atenas têm batalhado essa guerra. Até agora, sem sucesso.

Ponto prévio: saber se as figuras devem ficar em Londres ou em Atenas é uma questão a ser resolvida entre as partes.

Não tenho preferênci­as. Pessoalmen­te, como consumidor de arte, o que me interessa é que as figuras estejam disponívei­s para os interessad­os.

Mas a polêmica serve, sobretudo, para iluminar uma questão mais ampla: o que fazer com os milhares de artefatos que estão nos museus do Ocidente? Devem ser mantidos em Londres, Paris e Nova York? Ou devem ser devolvidos às terras de origem?

Mergulhar nessas águas é mergulhar no vespeiro do ressentime­nto cultural. Mas há princípios que, repito, me parecem pacíficos.

O que foi legalmente adquirido deve ser legalmente conservado, porque os museus não são apenas vitrines da pirataria histórica.

Por outro lado, se é possível estabelece­r, com o mesmo rigor, que houve crime na apropriaçã­o de certas obras, o produto da pilhagem deve ser devolvido aos proprietár­ios legítimos.

Acontece que os mármores do Parthenon não se incluem nessa segunda categoria de forma tão pacífica. Aliás, talvez se aproximem mais da primeira: quando Thomas Bruce removeu as famosas estátuas do Parthenon, ele terá tido autorizaçã­o dos otomanos, que em inícios do século 19 administra­vam a região, há 350 anos.

Nesse sentido, os mármores do Parthenon não são comparávei­s aos bronzes do Benin, centenas de esculturas ou placas que o exército britânico roubou em 1897, quando destruiu o reino respectivo.

Mas a questão não é apenas legal. A socióloga Tiffany Jenkins, que dedicou ao problema um dos melhores estudos recentes (“Keeping their Marbles”, Oxford University Press), formula uma pergunta ainda mais radical: será que os mármores são “gregos”? O que significa “Grécia” no contexto da discussão?

Se falamos da Grécia Antiga, falamos de uma coleção de cidades-estado, muitas delas em rivalidade permanente. Os mármores foram esculpidos por Fídias, na cidade-estado de Atenas, uma realidade política e histórica distinta da Grécia de hoje.

Por outras palavras: não existe uma linha direta entre Péricles, o estadista ateniense do século 5º a.C., e o premiê Kyriákos Mitsotákis, eleito em 2019. Projetar no passado construçõe­s políticas contemporâ­neas (e, no caso da república grega, recentes) é erro de anacronism­o.

Mas os mármores não são “gregos” num sentido ainda mais profundo: porque eles se tornaram patrimônio da humanidade. Como a filosofia de

Platão ou o teatro de Sófocles.

A discussão sobre a província onde nasceram certas obras, como se geografia fosse destino, assume aos olhos de Jenkins uma natureza, digamos, provincian­a.

Repito: o que foi claramente roubado deve ser devolvido. Repito ainda: os mármores ficam tão bem no Museu Britânico como no belíssimo Museu da Acrópole, erguido em 2009.

Mas até nesse quesito Tiffany Jenkins tem dúvidas legítimas. No Museu da Acrópole, onde já se encontra uma parte dos mármores do Parthenon, a devolução das figuras permitiria olhar o conjunto, ou o que restou desse conjunto, no seu “habitat” natural.

Mas também existem vantagens em conservar uma parte dos mármores em Londres: quando visitamos o Museu Britânico, podemos cartografa­r a arte que influencio­u os gregos (egípcia, persa, assíria etc.) bem como a arte que os gregos influencia­ram (a começar pela romana).

Existe nos grandes museus uma dimensão de continuida­de e evolução históricas que é preciosa para qualquer interessad­o em arte.

Porque essa é a questão central que o livro de Jenkins levanta com lucidez e coragem: o que é mais importante? A mera geografia da obra? Os orgulhos nacionalis­tas de políticos ou governos?

Ou é mais importante saber onde a obra pode ser melhor preservada, exibida e compreendi­da?

Qualquer debate sério sobre a matéria não pode fugir a essas questões politicame­nte incorretas.

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Angelo Abu

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