Folha de S.Paulo

Perfil técnico de Mandetta é ilusão

- Fábio Zanini

Só quem não examinou a carreira pregressa do ministro se decepciona­ria com o afago a Bolsonaro. Ex-secretário de Saúde, exdeputado, ele terá de ser cada vez mais político para manter a condução técnica do ministério.

são paulo Por não ter a boçalidade de Abraham Weintraub (Educação) nem a truculênci­a de Jair Bolsonaro, o ministro Luiz Henrique Mandetta (Saúde) foi rapidament­e elevado à categoria de técnico na crise do coronavíru­s.

Em razão disso, muitos se decepciona­ram com seu desempenho obviamente político na quarta-feira (25), quando procurou se equilibrar entre as recomendaç­ões da comunidade médica de isolamento populacion­al e a pressão de seu chefe para relaxá-las.

Mandetta conseguiu safarse da enrascada com habilidade, criticando governador­es que promovem quarentena­s “exageradas”, o que certamente agradou a Bolsonaro. Mas no que mais importa, as diretrizes gerais do isolamento, tudo basicament­e permaneceu igual.

Só quem não examinou a carreira pregressa do ministro cai na esparrela de que ele nada tem de político.

Não há dúvida que sua formação na área médica é sólida, com pós-graduação em ortopedia pediátrica no Brasil e nos EUA. Mas há tempos que Mandetta enveredou pelas áreas sindical e política.

Primeiro, como presidente da cooperativ­a Unimed de Mato Grosso do Sul. Depois, como secretário de Saúde de Campo Grande e, finalmente, por dois mandatos como deputado federal pelo DEM-MS (2011-19).

Na Câmara, sua atuação foi primordial­mente na área da Saúde, mas com um indisfarçá­vel componente corporativ­ista. Eram comuns discursos em defesa de aumentos salariais para servidores da área e apoio a greves.

Quando deputado, o hoje ministro esteve na linha de frente da oposição à criação pelo PT do programa Mais Médicos, cujo carro-chefe era a vinda de profission­ais cubanos ao Brasil. A medida teve forte oposição da classe médica, mas foi implementa­da e durou até o começo de 2019, quando Bolsonaro desmantelo­u o programa.

Nas raras ocasiões em que não se dedicou a defender mais dinheiro para a Saúde, Mandetta fez lobby para outro setor politicame­nte muito forte, especialme­nte em seu estado, o dos ruralistas.

Criticou diversas vezes medidas da então presidente Dilma Rousseff de demarcação de terras indígenas em seu estado, dizendo que ela perseguia o agronegóci­o. “A presidente está dirigindo a sua raiva contra os produtores rurais, colocando todo o seu querer mal ao Brasil no agronegóci­o”, discursou no plenário, em 2016.

Um dos pontos que mais geraram frustração entre os admiradore­s do Mandetta “técnico” em sua fala desta quarta-feira foi a ênfase nos prejuízos econômicos causados pelo isolamento social, seguindo o receituári­o do presidente.

Mas essa preocupaçã­o não é estranha para ele. Um exemplo ilustrativ­o ocorreu em março de 2017, quando a Polícia Federal lançou a Operação Carne Fraca, cujo alvo eram supostas irregulari­dades em frigorífic­os.

Os prejuízos no setor foram imediatos, o que exasperou o hoje ministro. “[A PF] poderia ter batizado [a operação] de mal fiscal, fiscal que corrompe, mas ela foi ao produto e batizou de Carne Fraca. E produz hoje uma grande crise de arrecadaçã­o e política na pecuária brasileira”, declarou.

Antipetist­a ferrenho e homem de valores conservado­res, Mandetta se coloca em oposição a flexibiliz­ar o direito ao aborto e foi um militante contra a possibilid­ade de a interrupçã­o da gravidez ser aprovada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) para fetos com zika, entre 2015 e 2016. Chamou a prática de “eugenia”.

Já apontou da tribuna da Câmara a fragmentaç­ão da família causada pela Lei do Divórcio, mas está longe de ser obtuso como alguns de seus pares no governo federal. Defendeu, por exemplo, facilidade para importação de medicament­os à base de maconha.

É inevitável que centristas e progressis­tas se decepcione­m um pouco com seu novo herói Mandetta ao conhecerem quem ele realmente é. O fato de a base de comparação na Esplanada ser tão baixa pode turvar a realidade.

Ao que tudo indica, o ministro é um servidor sério, que vem tentando fazer seu trabalho em meio ao caos ao seu redor e à sabotagem que vem de cima.

Por enquanto, Mandetta vem conseguind­o desviar das muitas armadilhas que surgem. Paradoxalm­ente, para dar condução técnica à sua pasta, terá de ser cada vez mais político.

É inevitável que centristas e progressis­tas se decepcione­m um pouco com seu novo herói Mandetta ao conhecerem quem ele realmente é. O fato de a base de comparação na Esplanada ser tão baixa pode turvar a realidade

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