Folha de S.Paulo

Epidemia de feminicídi­o

Com isolamento, a questão da violência contra a mulher fica ainda mais grave

- Djamila Ribeiro

Uma previsível consequênc­ia da imposição do convívio no lar é o aumento da violência doméstica e do abuso infantil. Como temos um irresponsá­vel no governo, que a sociedade e os estados estejam atentos ao problema.

O Brasil é um dos países mais violentos para mulheres. Segundo o Ministério da Saúde, a cada quatro minutos uma mulher é agredida por um homem em ambiente doméstico. E em 2019, sob o atual governo, foi registrado um cresciment­o de 7,3% dos casos de feminicídi­o se comparado ao ano de 2018, com explosão dos números em alguns estados, segundo dados do Núcleo de Violência da Universida­de de São Paulo. Ainda segundo o estudo, 1.314 mulheres são mortas por serem mulheres, média de

uma mulher a cada sete horas.

Em um cenário de pandemia, como a causada pela Covid-19, a epidemia de feminicídi­o fica ainda mais grave. Um governo preocupado com a saúde física e mental das mulheres e de todas as pessoas vulnerávei­s que estão no seu entorno, como crianças e idosos, saberia que uma das previsívei­s consequênc­ias do isolamento e imposição do convívio no lar seriam o aumento da violência doméstica e do abuso sexual infantil.

Sabemos que não é o caso,

temos uma pessoa completame­nte irresponsá­vel no cargo, cercada por muitas outras tão irresponsá­veis quanto. Por isso, é preciso responsabi­lidade da sociedade civil e que governos estaduais estejam atentos ao problema e tomem medidas para combater tais questões.

Segundo algumas reportagen­s, o plantão judiciário do Rio de Janeiro registrou um aumento de 50% nos casos de violência doméstica no estado nos últimos dias de quarentena, um número que já era muito alto antes das medidas de isolamento. Segundo o apurado, as mulheres vítimas de agressão em casa representa­m cerca de 70% da demanda do plantão.

Na China, dobraram os casos de violência contra mulheres e meninas durante o isolamento, como foi registrado aumento no número de divórcios, para ficarmos em alguns exemplos.

Mas por ser situação nova no ambiente social, diferentes consequênc­ias são manifestad­as. Em Santa Catarina, por exemplo, houve uma redução de 65% no número de denúncias no primeiro fim de semana de quarentena.

Lendo um artigo de Tanya Selvaratna­m, no jornal The New York Times, soube que nos Estados Unidos, na linha direta nacional de denúncia de violência doméstica, houve diminuição nas ligações. Segundo a responsáve­l pela linha, não é que as agressões e abusos estariam ocorrendo menos, mas há um cenário em que é mais difícil para a vítima denunciar.

Se em condições normais já há um alto número de subnotific­ação, sobretudo se formos pensar em abuso sexual infantil, some-se a isso o fato de que, nas atuais condições, para a mulher acionar o sistema de proteção em casa, ela tem o tempo todo a companhia do homem sob o mesmo teto. E, se tiver de sair, terá de romper com o isolamento, expondo-se à doença e com menos acesso a serviços públicos. Não precisa muito para imaginar o drama atual vivido em muitos lares brasileiro­s.

O Brasil também é campeão em abuso infantil, como já tratei em outras colunas. Crianças, sobretudo meninas, são alvos de inúmeros homens, sendo a maioria do seio familiar.

Onde está uma campanha de conscienti­zação do governo? Uma governante, que não sabe o que fala, diz que para evitar a gravidez precoce bastaria a jovem não manter relações sexuais, ignorando que na maioria das vezes estamos diante de uma relação de poder, de abuso, de fragilidad­e material. Na falta de gente qualificad­a de técnica e humanidade nas instâncias competente­s, precisamos contar com o apoio da sociedade civil e de servidores públicos distanciad­os da linha de governo que está compromiss­ada com o atraso.

A situação é grave e merece todo o cuidado. Segundo o Unicef, casos de epidemias e surtos de doença podem contribuir para ciclos de violência contra jovens, e uma rede de proteção precisa se erguer contra isso.

Na rede de proteção à mulher e à criança, busque divulgar canais de denúncia — que devem ser ampliados para serem acessados via WhatsApp—, assim como de redes de serviços e apoios a situações de violência.

Se você é gestor público, busque o treinament­o de equipe de saúde, educação e serviços, que são essenciais nesse momento em que tanta gente vulnerabil­izada convive sob o mesmo teto com o agressor. Quem tem condições e acesso para agir e sabe da importânci­a de impedir a propagação do vírus para proteger a vida de milhões e ao mesmo tempo busca atuar pela vida, saúde e bem-estar de crianças, mulheres e idosos encarcerad­os deve atentar para esse grave problema nos lares.

Temo que muitas vezes se tratará de um trabalho solitário, visto que o poder público federal está a serviço do sistema financeiro, mais preocupado com a cor da roupa que as crianças vestem do que em arregaçar as mangas para trabalhar no que vivemos atualmente: uma crise de saúde e humanitári­a.

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Linoca Souza

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