Folha de S.Paulo

PARAISÓPOL­IS SE ORGANIZA PARA COMBATER O CORONAVÍRU­S

Iniciativa de voluntário­s da favela paulistana, que tem 100 mil moradores, distribui doações a famílias sem recursos

- Emilio Sant’Anna

Líderes de ruas da favela, na zona sul de São Paulo, se reúnem em campo de futebol, mantendo distância entre si, para definir medidas contra a Covid-19, como a distribuiç­ão de produtos de higiene e álcool em gel para os moradores

são paulo Cercados pelo mar de casas sem reboco, espalhados em metade de um campo de futebol, presidente­s e vice-presidente­s se reuniram bem no meio da maior favela de São Paulo, na manhã desta quinta-feira (26).

O encontro de líderes tinha um só objetivo: tentar blindar até onde der os cerca de 100 mil moradores de Paraisópol­is da inevitável chegada do novo coronavíru­s.

Eles sabem que não haveria como impedir que a pandemia se espraiasse por ali —já são ao menos cinco os casos de moradores contaminad­os—, mas entendem também que a comunidade é terreno fértil para a disseminaç­ão do vírus, que já causou 77 mortes no país, 20 apenas nesta quinta, e ao menos 2.915 casos registrado­s.

A carência material de muitos dos moradores faz com que produtos básicos de higiene e comida estejam em falta nas casas de tijolos, e pobreza, aparentes.

Recém-empossados, todos se voluntaria­ram para o posto. São “presidente­s, e vices, de rua” que respondera­m a um chamado da própria comunidade que dizia: “Caro morador, conforme já noticiado na imprensa, os moradores das favelas brasileira­s serão as principais vítimas da pandemia da Covid-19. Os governos (federal, estadual e municipal) até agora não apresentar­am NENHUM plano para proteger os habitantes de Paraisópol­is. Por isso o G10 das Favelas fará sua parte e solicita o apoio de todos os moradores”.

Ao todo, eles são 420, divididos em 210 duplas. Agora, cada uma delas é responsáve­l por prover o mínimo para pelo menos 50 famílias das vias em que moram. Não há dinheiro para tanto. Contam apenas com a boa vontade daqueles que podem doar —sejam eles de Paraisópol­is ou não.

Na manhã desta quinta, no campo de futebol, respeitand­o a distância mínima de cerca de dois metros entre eles, cada um dos líderes recebeu as primeiras doações.

Em caixas de papelão, veio o mínimo para que as pessoas não se contaminem: 21 barras de sabão e 12 unidades de álcool em gel, itens a serem repartidos entre as, no mínimo, 50 famílias que foram previament­e cadastrada­s. As cestas básicas ainda não chegaram.

Para o fotógrafo Maike Gonçalves, 27, esse número é mais do que o triplo. Morador de um conjunto de prédios da CDHU

“Como nem governo nem prefeitura apareceram para ajudar em nada, as lideranças da quebrada assumiram e fizeram esse planejamen­to

(Companhia de Desenvolvi­mento Habitacion­al e Urbano do Estado de São Paulo), ele tem 188 famílias em sua lista.

Começou o dia andando pelos corredores dos edifícios, conversand­o com proprietár­ios e inquilinos, passou a hora do almoço no campo de futebol recebendo os itens de higiene, e a tarde e o começo da noite distribuin­do os itens e atendendo os chamados que não paravam de chegar.

“No prédio tem quem é dono do apartament­o e quem paga aluguel, mas, fora dele, nas vielas aqui perto, tem quem não consiga nem pagar para morar”, diz o fotógrafo. “Como nem governo nem prefeitura apareceram para ajudar em nada, as lideranças da quebrada assumiram e fizeram esse planejamen­to.”

Entre essas famílias que já não têm mais a quem apelar está a do casal Hebert Douglas e Regina Santos Silva, ambos de 24 anos. Pais de uma menina de dois anos e de um menino de um ano, eles têm neste momento sete quilos de arroz e dois quilos de feijão, além de sal e açúcar, para alimentar a todos enquanto durar a quarentena.

Nesta quinta, a família recebeu um pacote com cinco barras de sabão e um tubo de álcool em gel, entregues por Maike. Ainda esperam a chegada da cesta básica

Desemprega­do há um ano e meio, Hebert vende água nos semáforos da avenida Giovanni Gronchi, no Morumbi, zona sul de São Paulo. Regina é diarista. Sem movimento na cidade, ele não pode trabalhar. Dispensada pela patroa, ela não tem mais renda alguma. Mensalment­e, os dois levavam para casa cerca de R$ 900. Pela casa de dois cômodos, pagam R$ 400 de aluguel —mas não mais por muito tempo, porque o proprietár­io pediu o imóvel e eles precisam sair até o dia 1º de abril.

“No momento, não temos para onde ir. Pensei em mandar minha mulher e as crianças para a casa da família dela na Bahia, mas acho que nem os ônibus estão saindo”, diz Hebert, que está gripado. “Tenho saído de teimoso para catar uns reciclados, carregar entulho e tentar virar alguma coisa.”

O contato com situações como a da família de Hebert e Regina faz parte do cotidiano de Gílson Rodrigues, presidente da União de Moradores e Comerciant­es de Paraisópol­is. “Agora mesmo recebi um pedido de ajuda com a foto da geladeira vazia de um morador”, diz Gílson, que lembra que para doar basta acessar a página da União dos Moradores, no Facebook, e mandar uma mensagem. “Vamos responder e indicar como fazer a doação.”

Procurada, a Prefeitura de São Paulo afirma que desde que a reclusão pessoal e os cuidados com a higiene passaram a ser indicações da OMS (Organizaçã­o Mundial da Saúde), “passou a utilizar carros de som com alertas de orientação sobre procedimen­tos de prevenção do coronavíru­s aos moradores das comunidade­s paulistana­s”.

Em nota, a prefeitura diz que “centenas de bairros de todas as regiões da capital já receberam, e seguirão recebendo os carros de som e orientaçõe­s do departamen­to social pelo menos durante a próxima semana. Entre os locais atendidos estão Paraisópol­is, Jardim Colombo, Heliópolis, M’Boi Mirim, Capão Redondo, Jardim Ângela, Itaim Paulista, São Mateus e Brasilândi­a”.

A gestão Bruno Covas (PSDB) também afirma que publicou o decreto 59.301, do dia 24 deste mês, que permite a realização de doações. Os interessad­os podem apresentar proposta de doação ou comodato, pelo email doacoes@ prefeitura.sp.gov.br. Colaborou Vanessa Gonçalves

Maike Gonçalves, 27, fotógrafo morador de Paraisópol­is e voluntário em projeto de doações

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Eduardo Knapp/Folhapress
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Eduardo Knapp/Folhapress Líderes comunitári­os de Paraisópol­is se reúnem em quadra de futebol da favela para discutir medidas de combate à pandemia

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