Diplomacia das máscaras
Europa teme influência chinesa, mas faz bem ao aceitar ajuda
A gota d’água parece ter sido um beijo na bandeira da China. O gesto veio do presidente da Sérvia ao recepcionar médicos chineses que chegaram ao país para ajudar no combate ao coronavírus.
Foi um beijo discreto, mas as juras de amor não foram poucas. Aleksandar Vucic aproveitou para criticar a União Europeia por abandonar seu país, inclusive porque alguns membros do bloco proibiram exportações de produtos como respiradores
e máscaras. A Sérvia não está sozinha ao aceitar ajuda dos chineses —ao menos outros 14 também o fizeram.
Nesta semana, o chefe da diplomacia europeia subiu o tom e disse estar havendo uma batalha global de narrativas. Josep Borrell se referiu à existência de um componente geopolítico associado ao que chamou de “política da generosidade” chinesa.
A China está saindo da crise no momento em que vários países mergulham nela. A circunstância
favorece a diplomacia chinesa. Nesta semana, Xi Jinping telefonou para diversos presidentes, entre os quais ao menos cinco europeus e Bolsonaro. O assunto não poderia ser diferente.
Em primeiro lugar, os chineses atuam para conter um risco à sua reputação. A China combate as tentativas de culpá-la pela crise do coronavírus. Entende que a atribuição de responsabilidade seria como culpar uma vítima. E estão dispostos a gritar (agora também
via Twitter) todas as vezes que alguém cruzar esta linha.
Mas é especialmente a segunda frente de atuação chinesa que tem gerado algum desconforto. Trata-se da política de prover assistência no combate à crise, enviando suprimentos médicos e especialistas.
A China, maior produtora mundial de máscaras, aumentou enormemente a capacidade de fabricação e agora está em condições de enviá-las para onde são mais úteis.
Neste momento, pelo menos 24 países passaram a proibir a exportação de equipamentos de proteção individual para priorizar necessidades locais. Quase sem ter de quem importar, os países com pouca produção doméstica se veem numa situação especialmente dramática. O beijo do sérvio não foi à toa.
Já batizada de diplomacia das máscaras, a atuação chinesa divide corações na Europa. Se pudesse, Bruxelas aceitaria os suprimentos médicos e descartaria o soft power que vem com eles.
Como não pode, aceita, agradece e emenda lembrando que, quando a China precisou, a Europa ajudou com carregamentos de itens médico-hospitalares.
Certa está a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ao destacar o valor da cooperação, sem esquecer que ela funciona nos dois sentidos.
A Europa se vê entre a diplomacia das máscaras de Pequim e a política externa America First de Washington. Bruxelas navega entre as duas potências de olhos abertos, mas faz bem ao não permitir que preocupações com a influência chinesa se sobreponham à prioridade de combater essa crise.
O mesmo dilema baterá às portas dos EUA em breve. Naturalmente, não será o Partido Comunista Chinês que tocará a campainha da Casa Branca. Veremos entidades como a Fundação Jack Ma capitaneando doações. Empresas de tecnologia também já entraram em campo.
E teremos governadores e prefeitos, menos interessados nas maquinações de Washington, dando boas-vindas à ajuda de onde ela vier. A diferença é que talvez por lá ninguém chegue a beijar a bandeira chinesa.