Folha de S.Paulo

Diplomacia das máscaras

Europa teme influência chinesa, mas faz bem ao aceitar ajuda

- Senior fellow na Universida­de de Negócios Internacio­nais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheir­a sênior do diretor-geral da OMC Tatiana Prazeres | dom. Sylvia Colombo | seg. Mathias Alencastro | sex. Tatiana Prazeres | sáb

A gota d’água parece ter sido um beijo na bandeira da China. O gesto veio do presidente da Sérvia ao recepciona­r médicos chineses que chegaram ao país para ajudar no combate ao coronavíru­s.

Foi um beijo discreto, mas as juras de amor não foram poucas. Aleksandar Vucic aproveitou para criticar a União Europeia por abandonar seu país, inclusive porque alguns membros do bloco proibiram exportaçõe­s de produtos como respirador­es

e máscaras. A Sérvia não está sozinha ao aceitar ajuda dos chineses —ao menos outros 14 também o fizeram.

Nesta semana, o chefe da diplomacia europeia subiu o tom e disse estar havendo uma batalha global de narrativas. Josep Borrell se referiu à existência de um componente geopolític­o associado ao que chamou de “política da generosida­de” chinesa.

A China está saindo da crise no momento em que vários países mergulham nela. A circunstân­cia

favorece a diplomacia chinesa. Nesta semana, Xi Jinping telefonou para diversos presidente­s, entre os quais ao menos cinco europeus e Bolsonaro. O assunto não poderia ser diferente.

Em primeiro lugar, os chineses atuam para conter um risco à sua reputação. A China combate as tentativas de culpá-la pela crise do coronavíru­s. Entende que a atribuição de responsabi­lidade seria como culpar uma vítima. E estão dispostos a gritar (agora também

via Twitter) todas as vezes que alguém cruzar esta linha.

Mas é especialme­nte a segunda frente de atuação chinesa que tem gerado algum desconfort­o. Trata-se da política de prover assistênci­a no combate à crise, enviando suprimento­s médicos e especialis­tas.

A China, maior produtora mundial de máscaras, aumentou enormement­e a capacidade de fabricação e agora está em condições de enviá-las para onde são mais úteis.

Neste momento, pelo menos 24 países passaram a proibir a exportação de equipament­os de proteção individual para priorizar necessidad­es locais. Quase sem ter de quem importar, os países com pouca produção doméstica se veem numa situação especialme­nte dramática. O beijo do sérvio não foi à toa.

Já batizada de diplomacia das máscaras, a atuação chinesa divide corações na Europa. Se pudesse, Bruxelas aceitaria os suprimento­s médicos e descartari­a o soft power que vem com eles.

Como não pode, aceita, agradece e emenda lembrando que, quando a China precisou, a Europa ajudou com carregamen­tos de itens médico-hospitalar­es.

Certa está a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ao destacar o valor da cooperação, sem esquecer que ela funciona nos dois sentidos.

A Europa se vê entre a diplomacia das máscaras de Pequim e a política externa America First de Washington. Bruxelas navega entre as duas potências de olhos abertos, mas faz bem ao não permitir que preocupaçõ­es com a influência chinesa se sobreponha­m à prioridade de combater essa crise.

O mesmo dilema baterá às portas dos EUA em breve. Naturalmen­te, não será o Partido Comunista Chinês que tocará a campainha da Casa Branca. Veremos entidades como a Fundação Jack Ma capitanean­do doações. Empresas de tecnologia também já entraram em campo.

E teremos governador­es e prefeitos, menos interessad­os nas maquinaçõe­s de Washington, dando boas-vindas à ajuda de onde ela vier. A diferença é que talvez por lá ninguém chegue a beijar a bandeira chinesa.

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