Folha de S.Paulo

‘Tensão cresce em vários setores, mas o pânico não salvará (desculpe o spoiler)’

- Susana Bragatto

barcelona Dia #13 – Quinta, 26 de março. Cena: um arlequim na floresta, duas máscaras na mão: uma feliz, outra adormecida.

“PALMA, PALMA, NÃO PRIEMOS CÂNICO!”

(Mas sim.)

Hoje deu vontade de gritar a frase do Chapolin da sacada. Sem pânico, mas com contundênc­ia. Que me joguem latas (e que sejam de atum).

Porque, sim, há sinais. Indicam mais sentimento­s no ar do que a bonita festa-dasolidari­edade que aparece em redes sociais, com gente bacana fazendo música para vizinhos ou ajudando a levar compras para idosos solitários em casa.

“Estamos há 15 dias [...] presos! E agora, o que nos trazem? Outro infectado morto no ônibus?” Quem grita é um homem encapuzado na rua, rodeado de dezenas de outros. Em vídeo divulgado ontem, um grupo de uns 50 homens protesta contra a entrada de um comboio da polícia que escoltava ambulância­s e ônibus com 27 idosos contagiado­s com coronavíru­s para uma residência local, a fim de obter melhor atenção médica.

O cenário é Línea de la Concepción, cidade com pouco mais de 60 mil habitantes na baía de Gibraltar. Além da atividade portuária, é conhecida como antigo lar de uma lenda do flamenco espanhol, Camarón de la Isla. E, agora, como a cidade onde habitantes recebem idosos enfermos com xingamento­s e coquetéis molotov. Duas pessoas foram detidas, e me parece pouco.

Para sublinhar que não compactuam com essa histeria, os linenses organizara­m uma salva de palmas em protesto. A polícia teve que botar um efetivo para proteger a residência onde estão os idosos. E assim avançamos. Espanha já acumula 4.089 mortos e 56.188 infectados. Já se fala em estabiliza­ção da curva, mas ainda é cedo para dizer.

Enquanto isso, em Madri, a crise vira, claro, matériapri­ma de disputas políticas.

Pablo Casado, líder do PP, de oposição, é uma das vozes que acusam o governo central de má administra­ção. Ele é parcialmen­te secundado por gentz nada fina como Santiago Abascal, do partido ultramegab­laster conservado­r Vox (de quarentena com coronavíru­s, após aparecer nas redes abraçadim com Eduardo Bolsonaro em evento com o capcioso nome de Conservati­ve Political Action Conference).

Casado apoia a prorrogaçã­o do estado de emergência, mas acusa o presidente Pedro Sánchez de “falta de humildade” e negligênci­a. “[O Governo] já sabia [...] o alcance da enfermidad­e e, no entanto, [...] autorizou a celebração de eventos massivos”, disse, em sessão no Congresso. Ele se refere principalm­ente às celebraçõe­s do Dia Internacio­nal da Mulher, permitidas mesmo depois de a União Europeia divulgar relatório desaconsel­hando aglomeraçõ­es.

Enquanto isso, o primeiro lote de testes rápidos que chegaram da China foram mandados de volta por serem “não fiáveis”. Vinham de empresa não certificad­a e tinham baixo nível de eficácia. Eu queria saber quem é o responsáve­l por uma burrada (caríssima) dessas, consideran­do que a embaixada da China na Espanha assegura que a tal empresa não constava na lista oficial fornecida a autoridade­s espanholas.

É isso, señoras e señores. No coração do cavalo louco que avança com curvas e gráficos (e pânico) contra o tempo, cada dia é um novo tsunami, exponencia­lmente mais dramático do que o dia anterior. E as divergênci­as estão por toda parte, embora ninguém, por antagonist­a que seja, tenha até agora citado “gripecita” para minimizar a gravidade da situação.

O governo da Catalunha, como o de Múrcia e outros, vem pedindo a radicaliza­ção do estado de emergência, o que incluiria o fechamento de fronteiras locais. Segundo informe divulgado pelo departamen­to de Saúde da Catalunha, tais medidas poderiam resultar num pico de contágios mais precoce, com cerca de 50 mil casos menos do que as tendências atuais.

O estado de calamidade está em muitos âmbitos, todos distantes do palácio de Moncloa, em Madri —hospitais, asilos, presídios, Bolsa, forças públicas, empresas, contas no vermelho, futuros desfeitos, contratos suspensos, solidões profundas, comunidade­s e coletivos vulnerávei­s. O pânico não salvará; agir e cooperar, sim (desculpem o spoiler).

Hora de ouvir Camarón, que cantou o poema de García Lorca: “Sobre a mesma coluna / Abraçados sonho e tempo / Cruza o gemido da criança / A língua rasgada do velho”. Palma, palma, gente.

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