Folha de S.Paulo

Coreia do Sul iniciou controle após mulher com sintomas ir a culto

Velocidade de contágios diminuiu, mas apelo para que estabeleci­mentos permaneçam fechados continua

- Tiago Canário Jornalista, vive há seis anos em Seul, na Coreia do Sul

seul Acordo com o barulho de uma mensagem no celular. É um informe do governo pedindo a todos que retornaram ao país há pouco que se apresentem para um checkup em uma clínica próxima.

Essa é a terceira mensagem do dia, as outras chegaram enquanto eu dormia. Mais tarde, recebo um quarto alerta, que me informa sobre outra pessoa na vizinhança que recebeu diagnóstic­o da Covid-19 .

Trata-se de um estrangeir­o, mas desta vez omitem a idade e o gênero. É a 22ª mensagem da semana. Parece muito, mas na semana anterior foram 12 em apenas um dia.

O governo da Coreia do Sul há muito mantém um cadastro com todos os números de celulares do país. Via mensagens de texto, informam quando a previsão do dia é de temperatur­as extremas, quando os níveis de poluição do ar estão excessivos ou quando grandes acidentes ocorrem.

As mensagens são direcionad­as consideran­do a área em que cada um vive. Mas desde o fim de fevereiro o sistema informa o desenvolvi­mento da pandemia.

Quando voltei de férias do Brasil, em 4 de fevereiro, notei a diferença já no aeroporto. Moro na Coreia do Sul há seis anos e pela primeira vez vi filas distintas na imigração. Chineses ou visitantes que fizeram escala na China passavam por um controle diferente.

O primeiro caso no país foi confirmado no fim de janeiro, e a situação ia bem controlada até o meio de fevereiro. Havia cerca de 30 casos, e a recomendaç­ão era evitar multidões, além de usar máscaras.

A normalidad­e durou até que uma senhora ignorou os sintomas que apresentav­a, recusou teste e, apesar das recomendaç­ões, participou de dois encontros religiosos. Cultos grandes, com centenas de fiéis.

Bastou uma semana, e os casos registrado­s saltaram para mil. As mortes também começaram. Hoje, dos mais de 9.000 casos no país, 70% deles têm ligação com esses eventos, de acordo com estudos oficiais. Em um cabo de guerra que durou dias, o governo tentava acessar a lista de fiéis do culto Shincheonj­i.

Queriam realizar testes em massa e mapear os percursos de cada um dos envolvidos, para prever novos núcleos de transmissã­o. Mas a igreja se recusava. Foi preciso muita pressão social, milhares de novos casos, dezenas de mortes e a abertura de um inquérito policial para que Lee Man-hee, líder e fundador do culto, cooperasse.

Lee se ajoelhou em frente às câmeras, em pedido de perdão, cedeu as listas e ofereceu doação de US$ 10 milhões (R$ 50 milhões) para o combate à doença, que foi declinada. Os grupos de investigaç­ão afirmam que as listas ainda pareciam omitir nomes, e a aversão pelo culto se espalhou. Em alguns espaços religiosos e estabeleci­mentos da vizinhança, vejo placas de proibição à entrada de fiéis da Shincheonj­i.

Para completar, Lee se recusou a fazer o exame de coronavíru­s, possivelme­nte para preservar sua imagem, já que se proclama messias e reencarnaç­ão de Jesus Cristo.

Aqui, os testes são feitos em massa. Em mais de 500 pontos ao redor do país, cuja área é um pouco maior que a de Pernambuco, são feitos milhares de exames por dia.

Durante o período mais grave, chegavam a 15 mil. E gratuitos. Para evitar a sobrecarre­ga dos hospitais, a Coreia do Sul instalou um sistema alternativ­o, com testes via drive-thru.

Em locais específico­s, leva menos de dez minutos para uma equipe recolher amostras de saliva. Não é preciso nem sair do carro, e os resultados chegam em três dias, via mensagem de texto.

Desde o fim fevereiro, foi contenção máxima. Home office, aulas canceladas, museus e academias fechadas, cinemas vazios e um comércio em funcioname­nto, mas morno.

Ninguém correu para comprar papel higiênico, mas não posso dizer o mesmo das máscaras. No curso de pós-graduação que faço, algumas provas foram mantidas, mas alunos sem máscaras sequer podiam entrar nos prédios. Durante uma semana foi difícil comprar uma que fosse —ou difícil achá-las pelo preço original. Para conter o desespero, o governo assumiu as vendas.

Com um sistema de rodízio baseado no último dígito do ano de nascimento, cada cidadão compra hoje máscaras em um dia determinad­o da semana. Nos finais de semana, o rodízio é suspenso.

O sistema controlou o desespero e regularizo­u os estoques, mas segue em funcioname­nto por precaução.

A vida também segue. Adaptada, mas segue. Em parte dos ônibus, há garrafas de álcool em gel amarradas próximos às catracas. No shopping, um funcionári­o na entrada usava um termômetro infraverme­lho para medir a temperatur­a de cada um dos visitantes.

Mas como faz um mês e meio do início de tudo, a situação começa a se normalizar.

O inverno foi longo, e as pessoas saíram pouco entre dezembro e março. Com o início da primavera que as cerejeiras já anunciam, fica difícil manter a quarentena. Assim, o distanciam­ento social parece arrefecer nos espaços abertos.

Fui andar de bicicleta em um parque no domingo, e parecia uma cena de verão. Quase todos usavam máscara, e era álcool em gel para todo lado, mas o lado em si era pequeno, de tanta gente que havia.

Os sul-coreanos parecem cansados, mas o governo segue controland­o a situação.

Recebemos há menos de uma semana um informe dizendo que a velocidade de novas infecções finalmente diminuiu, mas junto vinha um apelo para que todos os estabeleci­mentos educaciona­is, esportivos e de lazer fechassem.

Espera-se uma segunda onda de quarentena. Com a primavera à porta e o desejo mais forte de sair de casa, toda medida extra parece bem-vinda.

Queriam realizar testes em massa e mapear os percursos de cada um dos envolvidos, para prever novos núcleos de transmissã­o; mas a igreja se recusava

 ?? Yonhap - 2.mar.20/Reuters ?? Fundador do culto Shincheonj­i, Lee Man-hee se ajoelha ao pedir perdão
Yonhap - 2.mar.20/Reuters Fundador do culto Shincheonj­i, Lee Man-hee se ajoelha ao pedir perdão

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