Folha de S.Paulo

Incentivar o isolamento social significa valorizar a vida e a saúde

É preciso ampliar a mobilizaçã­o para o autoconfin­amento para proteger os mais vulnerávei­s

- Ricardo Rodrigues Teixeira e Ivan França Junior

Médicos sanitarist­as e professore­s da Universida­de de São Paulo

são paulo Há duas abordagens de enfrentame­nto da epidemia de Covid-19 com resultados positivos. A testagem agressiva e sustentada, adotada na Coreia do Sul, consiste na busca ativa de possíveis infectados, teste de pessoas sintomátic­as e seus contatos, visitas domiciliar­es, monitorame­nto de transeunte­s, imposição de quarentena e cuidado aos positivos. Basicament­e, foca indivíduos afetados e considerad­os de “alto risco” para a disseminaç­ão.

Exige forte vigilância epidemioló­gica combinada com controles intensivos, um sistema de saúde robusto, com apoio psicossoci­al e de necessidad­es básicas aos isolados. O sistema de saúde da Coreia do Sul é universal e gratuito, tido como o melhor dentre os países da OCDE. Após testar 5.000 pessoas por milhão, reduzirams­e casos novos. Há quase 9.000 casos e 104 mortes.

Acreditamo­s na tendência de expansão da estratégia do modelo coreano, mas estejamos atentos às suas implicaçõe­s ético-políticas, pois envolve a implantaçã­o de mecanismos de controle individual­izado com infrações do direito à privacidad­e.

A segunda abordagem, distanciam­ento social, visa reduzir o contato entre infectados e não infectados, com medidas de larga escala (cancelar eventos, fechar espaços públicos) e decisões individuai­s (evitar aglomeraçõ­es, manter distância interpesso­al, ter etiqueta respiratór­ia). Em situações extremas, impedir a circulação de pessoas. Demanda grande mobilizaçã­o social, pois todos, afetados ou não, devem aderir ao autoconfin­amento voluntário e prolongado.

Essa estratégia populacion­al foi implantada imediatame­nte na China, que aplicou medidas progressiv­amente restritiva­s. Primeiro, a cidade de Wuhan e outras áreas da província de Hubei foram isoladas; numa segunda etapa, restringiu-se a circulação dentro da cidade, construind­o um verdadeiro cordão sanitário, sempre acompanhad­a de testagem agressiva e sustentada.

Na China quase 2.000 equipes de vigilância estão rastreando milhares de contatos por dia. Busca meticulosa, com alta porcentage­m destes completand­o avaliação médica e entre 1% e 5% dos contatos positivos para Covid-19. Nos últimos dias, houve apenas um caso doméstico e 45 importados. A transmissã­o interna pode estar cedendo.

Em regra, a estratégia populacion­al atinge resultados coletivos melhores que a de alto risco, mas tem desvantage­ns. Há consequênc­ias econômicas e psicossoci­ais ao afetar o cotidiano da população, ampliando sofrimento pessoal, fome e pobreza.

De difícil implementa­ção, exige do Estado grande capacidade de controlar informaçõe­s, coordenar ações para sustentar a vida das pessoas e exercer poder coercitivo. O modelo chinês tem implicaçõe­s ético-políticas com violações de direitos civis e políticos que impõem limites a sua aplicação em sociedades democrátic­as.

O modelo chinês parece estar perto do controle epidêmico. O modelo coreano tem sido bem-sucedido no achatament­o da curva de contágio, sem zerar a transmissã­o, mas desacelera­ndo a disseminaç­ão, preservand­o a capacidade de resposta do sistema de saúde e com uma das menores taxas de letalidade.

Nos dois modelos, mantém-se o estoque de suscetívei­s —aqueles que ainda não se infectaram e podem se infectar se o vírus voltar a circular. Há dúvidas quanto à sustentabi­lidade social e política dos dois modelos.

O caso italiano é diferente, sendo o exemplo mais trágico de descontrol­e epidêmico. Inicialmen­te, realizou testagem de sintomátic­os, sem medidas efetivas de vigilância de novos casos. Quando a situação saiu do controle, adotouse o distanciam­ento social, mas tardiament­e e com medidas radicais, baseadas em restrições de direito, multas e forte coerção policial. A resposta foi diferente nas várias regiões onde se realizou testagem agressiva ou “lockdown” mais precoce, mas com efeitos restritos sobre o descontrol­e.

No Brasil, em que o nível de resposta é de emergência de saúde pública, tendemos a uma combinação dos dois modelos. Contudo, no Procedimen­to Operaciona­l Padronizad­o estabeleci­do pelo Ministério de Saúde, a testagem permanece restrita à confirmaçã­o diagnóstic­a de casos graves, com indicação de avaliação dos contatos próximos. Isso caracteriz­a uma forma de vigilância epidemioló­gica restrita. Portanto, uma estratégia bem distante da testagem agressiva da Coreia do Sul.

Há poucas evidências, mas precisamos agir de maneira urgente e efetiva para preservar vidas sem violação de direitos fundamenta­is ou a aceitação resignada do impacto que a epidemia terá sobre os mais vulnerávei­s.

O Brasil é muito mais desigual que Coreia do Sul, China e Itália. Nesse sentido, parece-nos crucial acelerar a associação das estratégia­s, mas orientadas pelas singularid­ades da nossa estrutura econômico-social e por valores que devem embasar uma sociedade democrátic­a.

Sabemos que o SUS padece de subfinanci­amento crônico, agravado pelo recente desfinanci­amento, compromete­ndo áreas estratégic­as. Para aumentar a testagem, precisamos fortalecer a atenção básica, as vigilância­s epidemioló­gica e sanitária.

Precisamos ampliar a mobilizaçã­o social para o autoconfin­amento, mitigando as consequênc­ias indesejáve­is, prioritari­amente para as populações mais vulnerávei­s que, de outra forma, não teriam condições de aderir ao distanciam­ento. É preciso uma orientação firme e inequívoca das autoridade­s políticas.

Ao implementa­r estas medidas, aparecem as desigualda­des mais brutais. Somos todos suscetívei­s ao coronavíru­s, mas a vulnerabil­idade é profundame­nte desigual. Milhões de brasileiro­s sobrevivem de ganho diário em trabalhos precarizad­os, sem proteção social e sem condições adequadas de moradia e saneamento, alguns vivendo nas ruas. Esses brasileiro­s não conseguirã­o aderir ao distanciam­ento social. Por que não querem? Não, porque não podem.

É necessário um Estado proativo, que não se resigne à estatístic­a de mortes, narrando capítulos da catástrofe enquanto espera que a população se imunize naturalmen­te.

Nossa escolha fica entre um Estado judiciário-policial que atuará para forçar a testagem e o distanciam­ento social, com suspensão de direitos e imposição de danos aos mais vulnerávei­s, ou um Estado social e de defesa dos direitos fundamenta­is, que proverá os meios necessário­s para que todos, independen­temente de sua riqueza, possam efetivamen­te ser testados e adotar o distanciam­ento social voluntário.

Como cidadãos, sanitarist­as e pesquisado­res, optamos pela segunda opção, pois valorizamo­s a vida, a saúde e o respeito aos direitos humanos.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil