Incentivar o isolamento social significa valorizar a vida e a saúde
É preciso ampliar a mobilização para o autoconfinamento para proteger os mais vulneráveis
Médicos sanitaristas e professores da Universidade de São Paulo
são paulo Há duas abordagens de enfrentamento da epidemia de Covid-19 com resultados positivos. A testagem agressiva e sustentada, adotada na Coreia do Sul, consiste na busca ativa de possíveis infectados, teste de pessoas sintomáticas e seus contatos, visitas domiciliares, monitoramento de transeuntes, imposição de quarentena e cuidado aos positivos. Basicamente, foca indivíduos afetados e considerados de “alto risco” para a disseminação.
Exige forte vigilância epidemiológica combinada com controles intensivos, um sistema de saúde robusto, com apoio psicossocial e de necessidades básicas aos isolados. O sistema de saúde da Coreia do Sul é universal e gratuito, tido como o melhor dentre os países da OCDE. Após testar 5.000 pessoas por milhão, reduziramse casos novos. Há quase 9.000 casos e 104 mortes.
Acreditamos na tendência de expansão da estratégia do modelo coreano, mas estejamos atentos às suas implicações ético-políticas, pois envolve a implantação de mecanismos de controle individualizado com infrações do direito à privacidade.
A segunda abordagem, distanciamento social, visa reduzir o contato entre infectados e não infectados, com medidas de larga escala (cancelar eventos, fechar espaços públicos) e decisões individuais (evitar aglomerações, manter distância interpessoal, ter etiqueta respiratória). Em situações extremas, impedir a circulação de pessoas. Demanda grande mobilização social, pois todos, afetados ou não, devem aderir ao autoconfinamento voluntário e prolongado.
Essa estratégia populacional foi implantada imediatamente na China, que aplicou medidas progressivamente restritivas. Primeiro, a cidade de Wuhan e outras áreas da província de Hubei foram isoladas; numa segunda etapa, restringiu-se a circulação dentro da cidade, construindo um verdadeiro cordão sanitário, sempre acompanhada de testagem agressiva e sustentada.
Na China quase 2.000 equipes de vigilância estão rastreando milhares de contatos por dia. Busca meticulosa, com alta porcentagem destes completando avaliação médica e entre 1% e 5% dos contatos positivos para Covid-19. Nos últimos dias, houve apenas um caso doméstico e 45 importados. A transmissão interna pode estar cedendo.
Em regra, a estratégia populacional atinge resultados coletivos melhores que a de alto risco, mas tem desvantagens. Há consequências econômicas e psicossociais ao afetar o cotidiano da população, ampliando sofrimento pessoal, fome e pobreza.
De difícil implementação, exige do Estado grande capacidade de controlar informações, coordenar ações para sustentar a vida das pessoas e exercer poder coercitivo. O modelo chinês tem implicações ético-políticas com violações de direitos civis e políticos que impõem limites a sua aplicação em sociedades democráticas.
O modelo chinês parece estar perto do controle epidêmico. O modelo coreano tem sido bem-sucedido no achatamento da curva de contágio, sem zerar a transmissão, mas desacelerando a disseminação, preservando a capacidade de resposta do sistema de saúde e com uma das menores taxas de letalidade.
Nos dois modelos, mantém-se o estoque de suscetíveis —aqueles que ainda não se infectaram e podem se infectar se o vírus voltar a circular. Há dúvidas quanto à sustentabilidade social e política dos dois modelos.
O caso italiano é diferente, sendo o exemplo mais trágico de descontrole epidêmico. Inicialmente, realizou testagem de sintomáticos, sem medidas efetivas de vigilância de novos casos. Quando a situação saiu do controle, adotouse o distanciamento social, mas tardiamente e com medidas radicais, baseadas em restrições de direito, multas e forte coerção policial. A resposta foi diferente nas várias regiões onde se realizou testagem agressiva ou “lockdown” mais precoce, mas com efeitos restritos sobre o descontrole.
No Brasil, em que o nível de resposta é de emergência de saúde pública, tendemos a uma combinação dos dois modelos. Contudo, no Procedimento Operacional Padronizado estabelecido pelo Ministério de Saúde, a testagem permanece restrita à confirmação diagnóstica de casos graves, com indicação de avaliação dos contatos próximos. Isso caracteriza uma forma de vigilância epidemiológica restrita. Portanto, uma estratégia bem distante da testagem agressiva da Coreia do Sul.
Há poucas evidências, mas precisamos agir de maneira urgente e efetiva para preservar vidas sem violação de direitos fundamentais ou a aceitação resignada do impacto que a epidemia terá sobre os mais vulneráveis.
O Brasil é muito mais desigual que Coreia do Sul, China e Itália. Nesse sentido, parece-nos crucial acelerar a associação das estratégias, mas orientadas pelas singularidades da nossa estrutura econômico-social e por valores que devem embasar uma sociedade democrática.
Sabemos que o SUS padece de subfinanciamento crônico, agravado pelo recente desfinanciamento, comprometendo áreas estratégicas. Para aumentar a testagem, precisamos fortalecer a atenção básica, as vigilâncias epidemiológica e sanitária.
Precisamos ampliar a mobilização social para o autoconfinamento, mitigando as consequências indesejáveis, prioritariamente para as populações mais vulneráveis que, de outra forma, não teriam condições de aderir ao distanciamento. É preciso uma orientação firme e inequívoca das autoridades políticas.
Ao implementar estas medidas, aparecem as desigualdades mais brutais. Somos todos suscetíveis ao coronavírus, mas a vulnerabilidade é profundamente desigual. Milhões de brasileiros sobrevivem de ganho diário em trabalhos precarizados, sem proteção social e sem condições adequadas de moradia e saneamento, alguns vivendo nas ruas. Esses brasileiros não conseguirão aderir ao distanciamento social. Por que não querem? Não, porque não podem.
É necessário um Estado proativo, que não se resigne à estatística de mortes, narrando capítulos da catástrofe enquanto espera que a população se imunize naturalmente.
Nossa escolha fica entre um Estado judiciário-policial que atuará para forçar a testagem e o distanciamento social, com suspensão de direitos e imposição de danos aos mais vulneráveis, ou um Estado social e de defesa dos direitos fundamentais, que proverá os meios necessários para que todos, independentemente de sua riqueza, possam efetivamente ser testados e adotar o distanciamento social voluntário.
Como cidadãos, sanitaristas e pesquisadores, optamos pela segunda opção, pois valorizamos a vida, a saúde e o respeito aos direitos humanos.