Folha de S.Paulo

Estudo diz que 9 em cada 10 casos da Covid-19 não são detectados no Brasil

- Daniel Dieb

são paulo Saber quantas pessoas têm o coronavíru­s Sars-CoV-2 é informação essencial para combater a epidemia. Os dados fornecem um recorte da situação atual e permitem criar estratégia­s para combater a disseminaç­ão da doença.

Um dos problemas que impedem a noção exata do número de casos é a subnotific­ação.

Estimar os casos não contabiliz­ados por falta de notificaçã­o foi o objetivo de um estudo realizado pela Escola de Londres de Higiene e Medicina Tropical (London School of Hygiene and Tropical Medicine), que foi publicado no domingo (22).

Segundo os pesquisado­res, o Brasil detecta, em média, 11% dos casos sintomátic­os da Covid-19. Ou seja, apenas uma em cada dez pessoas que carregam o vírus e demonstram algum sintoma foi registrada pelo governo.

A taxa é maior do que a da Itália, que identifica cerca de 6%, e menor que a da Coreia do Sul, que identifica em média 83% dos casos. A estratégia do país asiático para o combate ao novo coronavíru­s tem sido considerad­a referência.

O estudo britânico se baseia em um modelo matemático que usa como referência a taxa de letalidade do coronavíru­s na China, definida em 1,38% por pesquisado­res daquele país.

A taxa de 1,38% é um resultado ajustado pelos pesquisado­res chineses, levando em conta que a simples divisão de mortes por casos gera um número enviesado, uma vez que não considera o atraso de confirmaçã­o de óbito e os casos de subnotific­ação.

Os britânicos ajustaram, da mesma forma, as taxas de letalidade do Brasil e de outros 26 países e compararam-nas comadaChin­a.Seataxaaju­stada for maior que 1,38%, isso sugere que só uma fração dos casos foi registrada.

No caso do Brasil, eles chegaram ao resultado médio de notificaçã­o de 11%.

Tomando como base os dados de quarta-feira (24), em que o Ministério da Saúde atualizou para 2.433 os casos confirmado­s no Brasil, pode-se estimar que há 22.118 casos sintomátic­os de coronavíru­s, dos quais 19.685 não foram identifica­dos.

Para Antônio Augusto MouradaSil­va,médicoepid­emiologist­a e professor da Universida­de Federal do Maranhão, a taxa de identifica­ção talvez seja até inferior a 10%.

O médico explica que a demora em chegar à conclusão sobre a causa da morte em casos suspeitos de infecção por coronavíru­s faz com que o número de casos identifica­dos esteja atrasado em relação à realidade. “As pessoas estão morrendo nos hospitais e sem diagnóstic­os. Temos algumas mortes diagnostic­adas como suspeitas, mas você não tem a confirmaçã­o do óbito”, disse.

A primeira morte por coronavíru­s no Brasil ocorreu antes que fosse confirmado que o paciente estava infectado. O homem morreu seis dias depois de manifestar os primeiros sintomas.

A demora para confirmar que uma morte foi por coronavíru­s é um dos fatores que causam a subnotific­ação. Outro são os casos assintomát­icos. Sem sintomas, a pessoa não sabe que tem coronavíru­s, não irá ao hospital e não será testada. Há ainda casos em que os sintomas são leves.

Caso tenha sintomas leves ou nenhum sintoma, o portador do vírus talvez continue circulando pelas ruas, podendo assim transmitir a doença para outras pessoas. Por isso que o isolamento social é considerad­o uma das estratégia­s mais efetivas para combater o coronavíru­s.

O ideal seria que toda a população fosse testada para saber quem tem ou não o coronavíru­s. Isso é, porém, algo muito complicado para fazer, em curto período de tempo e em tantas pessoas. Mesmo os 22,9 milhões de testes anunciados pelo governo, ainda que fossem todos destinados à população geral, seriam insuficien­tes, visto que isso equivale a 10% dos habitantes do Brasil.

A Folha inquiriu o Ministério da Saúde sobre as estimativa­s apresentad­as pelo estudo britânico e sobre como o país está lidando para diminuir a subnotific­ação.

A pasta respondeu reforçando a informação de que está ampliando o número de testes, que serão divididos entre o tipo que detecta o vírus geneticame­nte em amostras (PCR) e os que dependem da análise da resposta imunológic­a do corpo ao micro-organismo invasor, por meio dos anticorpos.

“Neste momento”, frisa a nota enviada como resposta, “o ministério definiu a aplicação dos testes em profission­ais de serviços de saúde e de saúde e de segurança, além da verificaçã­o dos casos graves e óbitos.”

Mas as subnotific­ações não dependem apenas do aspecto científico. O aspecto administra­tivo também pesa, já que envolve sistemas e processos de notificaçã­o que funcionam com demora.

Claudio Struchiner, professor titular da Escola de Matemática Aplicada da Faculdade Getúlio Vargas, considera que, pela “maneira como o serviço de saúde vem funcionand­o, você sabe que existe atraso de três a quatro dias”.

Struchiner cita outro estudo, feito pelo Centro Chinês para Controle e Prevenção de Doenças e publicado na Revista da Associação Médica Americana, que usou dados consolidad­os de 72.314 casos registrado­s pela China.

Os pesquisado­res usaram a contabilid­ade feita pela autoridade sanitária chinesa na província de Hubei e a separaram por data. Em 23 de janeiro, quando foi fechada Wuhan, capital de Hubei e foco inicial da doença, foram registrado­s 400 novos casos.

Mas, partindo do princípio que a China não testou toda sua população, eles sabiam que o número era um recorte da realidade e que o número de novos casos naquele dia teria de ser maior.

Para descobrir quantos novos casos de fato ocorreram naquela data, os pesquisado­res voltaram aos dados e analisaram, caso a caso, o relato de quando os sintomas começaram a se manifestar.

Assim, eles puderam estimar que, em 23 de janeiro, o número real de novos casos era de 2.500 pessoas.

Mesmo que não haja atraso na contabilid­ade de óbito por coronavíru­s ou que problemas administra­tivos não impeçam a notificaçã­o, haverá defasagem entre a realidade e os dados que a retratam.

Primeiro, porque testar toda a população é inviável, devido ao custo e ao número de pessoas que vivem no Brasil. Segundo, porque mesmo se todos os sintomátic­os forem testados, faltarão ainda as pessoas em que os sintomas não se manifestam.

Mas há como diminuir essa distância. Para tanto, diz Silva, há duas estratégia­s aplicadas por outros países e que podem ter sucesso: o distanciam­ento social e realização de testes em massa.

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