Governo Bolsonaro atua contra pesquisa em ciências humanas
brasília Em meio à pandemia de coronavírus no Brasil, o governo Jair Bolsonaro faz uma investida contra as pesquisas em ciências humanas.
O MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) e o MEC (Ministério da Educação) reduziram mecanismos de financiamento de pesquisas na área.
Uma portaria do MCTI de terça-feira (24) excluiu as ciências humanas das prioridades de projetos de pesquisa no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) até 2023. Já a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), ligada ao MEC, alterou na semana passada as regras para a concessão de bolsas que haviam sido publicadas em fevereiro.
As mudanças nas agências vão ao encontro da visão do governo federal de que o fomento à ciência tem de dar retorno imediato.
No caso do MCTI, a portaria prevê que o CNPq promova as adequações nas linhas de financiamento e fomento para incorporar as mudanças. Isso vai impactar bolsas de pesquisadores de humanas.
O texto é focado em tecnologias, classificadas como estratégicas (que vai de tecnologia espacial a segurança pública), habilitadoras (inteligência artificial), de produção (indústria, agronegócio, serviços), para o desenvolvimento sustentável e para qualidade de vida (saúde, saneamento básico, por exemplo).
Ao definir essas prioridades, a portaria do MCTI defende que o objetivo é a contribuição para alavancar setores que teriam maiores potencialidades “para a aceleração do desenvolvimento econômico e social do país”. Entre os objetivos da definição de prioridades está, também, o de “racionalizar o uso dos recursos orçamentários e financeiros”. Com isso, as humanidades deverão ter perda de recursos.
Até o ano passado, o CNPq financiava 84 mil pesquisadores com bolsas. Segundo dados fornecidos de abril do ano passado, 10% dos R$ 1,1 bilhão pagos em bolsas órgão se referiam às ciências humanas.
Se também levadas em conta as áreas de ciências sociais aplicadas e linguística, letras e artes, esse percentual chega a 20%. Mais da metade dos recursos era direcionada para ciências exatas, engenharias e ciências biológicas.
“Defendemos que essas prioridades precisam ser revistas e ampliadas”, diz nota do Sindicato Nacional dos Servidores Públicos Federais da Carreira de Gestão, Planejamento e Infraestrutura em Ciência e Tecnologia.
Em nota, o CNPq afirmou que projetos já contratados não serão afetados e que o órgão segue as orientações do ministério. O MCTIC não respondeu à reportagem.
As mudanças das regras de
“O violento corte de bolsas da Capes dirigida à área de ciências sociais e as diretrizes da portaria do MCTI [CNPq] refletem o descaso do governo com um campo científico fundamental para a construção das políticas públicas no país
concessão de bolsas na Capes causam maior impacto negativo nas humanidades. A publicação da semana passada foi seguida por reação de entidades ligadas à pesquisa e pedido de sua revogação imediata.
A alteração ocorreu após intervenção do ministro Abraham Weintraub (Educação).
Ele ficou insatisfeito porque as regras não atendiam a sua visão de reduzir fomento para áreas de humanas. O presidente Jair Bolsonaro também já criticou as humanas.
Em fevereiro, a Capes havia estipulado o novo sistema para a concessão de bolsas de pesquisa. O órgão é responsável pela organização e avaliação da pós-graduação no país.
O modelo criou critérios que passam pela qualidade dos programas, quantidade de titulados e IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) do local do curso.
Havia, no entanto, uma trava para que nenhum programa perdesse mais do que 10% das bolsas. Esse teto foi praticamente eliminado com a nova portaria do governo, publicada no dia 18 de março.
Com a mudança, um programa nota máxima (em escala que vai a 7) pode perder até 20% dos benefícios. Um programa nota 3, mínimo para funcionamento, pode ter redução de até 50%.
A concessão também se baseia nos chamados “quantitativos iniciais” de bolsas, organizados por grandes áreas do conhecimento.
Cursos de doutorado com notas 4, por exemplo, têm como quantitativo inicial o número de 12 bolsas nos colégios de ciências da vida e no de ciências exatas, tecnológicas e multidisciplinar.
Nas humanidades, esse quantitativo é de 10. Isso significa que, sem as travas de 10%, as humanas perdem mais.
A área que reúne antropologia e arqueologia perdeu 16,3% de bolsas de mestrado e 10,5% de bolsas de doutorado, segundo levantamento da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais). No total, a perda foi de 101 bolsas de um total de 743 bolsas.
“O violento corte de bolsas da Capes dirigida à área de ciências sociais e as diretrizes da portaria do MCTI [CNPq] refletem o descaso do governo com um campo científico fundamental para a construção das políticas públicas no país”, afirma a presidente da Anpocs, Miriam Grossi.
“Pesquisas desta área são vitais para se entender valores e práticas sociais para o enfrentamento deste momento crítico global”, afirma.
As humanas incluem áreas como direito, economia, administração e educação.
Mais de 60 entidades científicas endossam carta na qual a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) externa “enorme preocupação” com a medida e pedem sua revogação.
A própria associação de servidores da Capes divulgou nota em que considera inadequado alterar as regras em meio à pandemia de coronavírus.
“É preocupante como as humanidades estão sendo tratadas pelo atual governo”, afirma o presidente do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Pesquisa e Pós-Graduação, Carlos Henrique de Carvalho.
“Um país é soberano na medida em que sua ciência é valorizada, e ciência não tem ideologia”, diz ele.
Carvalho diz que as novas regras trazem “impacto nefasto” porque desestabiliza programas novos, acabam com as travas e impedem uma implementação gradual do modelo.
A Capes não respondeu por que a nova portaria não foi discutida e por que as humanas foram mais atingidas.
“De acordo com as portarias, os cursos de pós-graduação historicamente mal atendidos passam a receber mais bolsas”, informa texto divulgado pela agência. Não há previsão de corte de bolsas em andamento.
A Capes financia 84,6 mil pesquisadores com bolsas de mestrado, doutorado e pósdoutorado, após ter havido no ano passado um corte de 7.590 benefícios.
O órgão afirma que, com o novo modelo de concessão, vai ampliar o número de bolsas, mas não apresentou o quadro geral.
Questionado sobre a intervenção de Weintraub, o MEC também não respondeu.
Miriam Grossi presidente da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais)