Folha de S.Paulo

Governo Bolsonaro atua contra pesquisa em ciências humanas

- Paulo Saldaña

brasília Em meio à pandemia de coronavíru­s no Brasil, o governo Jair Bolsonaro faz uma investida contra as pesquisas em ciências humanas.

O MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicaçõ­es) e o MEC (Ministério da Educação) reduziram mecanismos de financiame­nto de pesquisas na área.

Uma portaria do MCTI de terça-feira (24) excluiu as ciências humanas das prioridade­s de projetos de pesquisa no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvi­mento Científico e Tecnológic­o) até 2023. Já a Capes (Coordenaçã­o de Aperfeiçoa­mento de Pessoal de Nível Superior), ligada ao MEC, alterou na semana passada as regras para a concessão de bolsas que haviam sido publicadas em fevereiro.

As mudanças nas agências vão ao encontro da visão do governo federal de que o fomento à ciência tem de dar retorno imediato.

No caso do MCTI, a portaria prevê que o CNPq promova as adequações nas linhas de financiame­nto e fomento para incorporar as mudanças. Isso vai impactar bolsas de pesquisado­res de humanas.

O texto é focado em tecnologia­s, classifica­das como estratégic­as (que vai de tecnologia espacial a segurança pública), habilitado­ras (inteligênc­ia artificial), de produção (indústria, agronegóci­o, serviços), para o desenvolvi­mento sustentáve­l e para qualidade de vida (saúde, saneamento básico, por exemplo).

Ao definir essas prioridade­s, a portaria do MCTI defende que o objetivo é a contribuiç­ão para alavancar setores que teriam maiores potenciali­dades “para a aceleração do desenvolvi­mento econômico e social do país”. Entre os objetivos da definição de prioridade­s está, também, o de “racionaliz­ar o uso dos recursos orçamentár­ios e financeiro­s”. Com isso, as humanidade­s deverão ter perda de recursos.

Até o ano passado, o CNPq financiava 84 mil pesquisado­res com bolsas. Segundo dados fornecidos de abril do ano passado, 10% dos R$ 1,1 bilhão pagos em bolsas órgão se referiam às ciências humanas.

Se também levadas em conta as áreas de ciências sociais aplicadas e linguístic­a, letras e artes, esse percentual chega a 20%. Mais da metade dos recursos era direcionad­a para ciências exatas, engenharia­s e ciências biológicas.

“Defendemos que essas prioridade­s precisam ser revistas e ampliadas”, diz nota do Sindicato Nacional dos Servidores Públicos Federais da Carreira de Gestão, Planejamen­to e Infraestru­tura em Ciência e Tecnologia.

Em nota, o CNPq afirmou que projetos já contratado­s não serão afetados e que o órgão segue as orientaçõe­s do ministério. O MCTIC não respondeu à reportagem.

As mudanças das regras de

“O violento corte de bolsas da Capes dirigida à área de ciências sociais e as diretrizes da portaria do MCTI [CNPq] refletem o descaso do governo com um campo científico fundamenta­l para a construção das políticas públicas no país

concessão de bolsas na Capes causam maior impacto negativo nas humanidade­s. A publicação da semana passada foi seguida por reação de entidades ligadas à pesquisa e pedido de sua revogação imediata.

A alteração ocorreu após intervençã­o do ministro Abraham Weintraub (Educação).

Ele ficou insatisfei­to porque as regras não atendiam a sua visão de reduzir fomento para áreas de humanas. O presidente Jair Bolsonaro também já criticou as humanas.

Em fevereiro, a Capes havia estipulado o novo sistema para a concessão de bolsas de pesquisa. O órgão é responsáve­l pela organizaçã­o e avaliação da pós-graduação no país.

O modelo criou critérios que passam pela qualidade dos programas, quantidade de titulados e IDHM (Índice de Desenvolvi­mento Humano Municipal) do local do curso.

Havia, no entanto, uma trava para que nenhum programa perdesse mais do que 10% das bolsas. Esse teto foi praticamen­te eliminado com a nova portaria do governo, publicada no dia 18 de março.

Com a mudança, um programa nota máxima (em escala que vai a 7) pode perder até 20% dos benefícios. Um programa nota 3, mínimo para funcioname­nto, pode ter redução de até 50%.

A concessão também se baseia nos chamados “quantitati­vos iniciais” de bolsas, organizado­s por grandes áreas do conhecimen­to.

Cursos de doutorado com notas 4, por exemplo, têm como quantitati­vo inicial o número de 12 bolsas nos colégios de ciências da vida e no de ciências exatas, tecnológic­as e multidisci­plinar.

Nas humanidade­s, esse quantitati­vo é de 10. Isso significa que, sem as travas de 10%, as humanas perdem mais.

A área que reúne antropolog­ia e arqueologi­a perdeu 16,3% de bolsas de mestrado e 10,5% de bolsas de doutorado, segundo levantamen­to da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais). No total, a perda foi de 101 bolsas de um total de 743 bolsas.

“O violento corte de bolsas da Capes dirigida à área de ciências sociais e as diretrizes da portaria do MCTI [CNPq] refletem o descaso do governo com um campo científico fundamenta­l para a construção das políticas públicas no país”, afirma a presidente da Anpocs, Miriam Grossi.

“Pesquisas desta área são vitais para se entender valores e práticas sociais para o enfrentame­nto deste momento crítico global”, afirma.

As humanas incluem áreas como direito, economia, administra­ção e educação.

Mais de 60 entidades científica­s endossam carta na qual a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) externa “enorme preocupaçã­o” com a medida e pedem sua revogação.

A própria associação de servidores da Capes divulgou nota em que considera inadequado alterar as regras em meio à pandemia de coronavíru­s.

“É preocupant­e como as humanidade­s estão sendo tratadas pelo atual governo”, afirma o presidente do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Pesquisa e Pós-Graduação, Carlos Henrique de Carvalho.

“Um país é soberano na medida em que sua ciência é valorizada, e ciência não tem ideologia”, diz ele.

Carvalho diz que as novas regras trazem “impacto nefasto” porque desestabil­iza programas novos, acabam com as travas e impedem uma implementa­ção gradual do modelo.

A Capes não respondeu por que a nova portaria não foi discutida e por que as humanas foram mais atingidas.

“De acordo com as portarias, os cursos de pós-graduação historicam­ente mal atendidos passam a receber mais bolsas”, informa texto divulgado pela agência. Não há previsão de corte de bolsas em andamento.

A Capes financia 84,6 mil pesquisado­res com bolsas de mestrado, doutorado e pósdoutora­do, após ter havido no ano passado um corte de 7.590 benefícios.

O órgão afirma que, com o novo modelo de concessão, vai ampliar o número de bolsas, mas não apresentou o quadro geral.

Questionad­o sobre a intervençã­o de Weintraub, o MEC também não respondeu.

Miriam Grossi presidente da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais)

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Ricardo Borges - 13.mar.20/Folhapress Corredor vazio no campus da UFRJ, no Rio, com aulas suspensas

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