Circuitos de ricos e famosos espalharam a Covid-19 no Brasil
De Aspen a Itacaré, viajantes trouxeram o novo vírus e viraram alvo de autoridades
são paulo É VIP o circuito que conta a chegada do coronavírus ao Brasil por meio de viajantes a bordo de jatinhos ou em voos internacionais de primeira classe ou executiva.
A disseminação da Covid-19 em terras brasileiras passa por eventos sociais em points do litoral baiano, como Trancoso e Itacaré, e no tradicional Country Club do Rio de Janeiro.
“O vírus foi trazido por uma elite viajada, veio de fora e se propagou muito rápido em nossos círculos”, diz uma sócia do clube, que pede para não ser identificada. Ela entrou para o rol dos estimados 60 associados do Country com teste positivo para coronavírus nas últimas duas semanas.
Uma sequência de eventos da alta sociedade levou à espiral de contágios entre membros de algumas das mais abastadas famílias brasileiras.
Um deles foi o noivado do príncipe dom Pedro Alberto de Orleans e Bragança, 31, e Alessandra Fragoso Pires, 26, na casa dos pais do noivo, para 70 convidados, em 7 de março.
O mapa da pandemia da Covid-19 estava bem representado no almoço que reuniu membros da família imperial, recém-chegados de Londres, como o príncipe dom Alberto e a paisagista Maritza de Orleans e Bragança, e amigos vindos da Bélgica e da Itália.
Naquele mesmo sábado, Marcella Minelli e Marcelo Bezerra de Menezes faziam uma festa de casamento de sonhos no Txai Resort, no litoral sul da Bahia.
Entre as centenas de convidados estava uma galera animada que acabara de voltar de temporada de esqui em Aspen, nos Estados Unidos, e de viagens no Carnaval para a Europa.
As duas celebrações ganharam o noticiário como epicentros da pandemia no Brasil, assim como a comitiva do presidente Jair Bolsonaro, após evento em Miami, com dezenas de infectados no primeiro escalão e empresários.
A seguir, a reportagem da Folha liga cenários e carimbos no passaporte para mostrar a ciranda de contágio a partir dos primeiros diagnósticos da Covid-19 no Rio, em São Paulo e na Bahia.
Circuito fluminense
O coronavírus foi se espraiando desde o chamado circuito Elizabeth Arden (Paris, Milão, Londres e Nova York) até Miguel Pereira, a 100 km da capital fluminense, município que entra no mapa pela porta de serviço.
Deu no New York Times a morte da empregada doméstica Cleonice Gonçalves, 63, na terça-feira (17), primeiro óbito oficial pela Covid-19 no estado do Rio.
A funcionária fora contaminada pela patroa, moradora do Leblon, que passara férias na Itália.
Para Carla Gonçalves, 42, irmã de Cleonice, o contágio foi uma fatalidade. “Não houve intenção de contaminar. A patroa dela está bem debilitada e triste. São 20 anos de convivência.”
Cleonice foi internada no final da tarde de segunda-feira, quando retornou do Rio de táxi passando mal. Na terça, a patroa ligou às 9h para informar que seu teste era positivo. Às 13h, veio o óbito. “Infelizmente, as pessoas não estão levando o coronavírus a sério, achando que é gripezinha”, lamenta Carla.
Na segunda-feira (23), morria a socialite Mirna Bandeira de Mello, 71, primeira vítima do grupo de convidados do noivado do príncipe.
Tia do noivo, a apresentadora Márcia Peltier fez um post de máscara para anunciar que tinha Covid-19. “Já estava em isolamento social desde a semana passada quando algumas pessoas da minha família testaram positivo”.
Com sintomas brandos, ela alertava para o fato de que amigos não tiveram a mesma sorte. Foram internados com pneumonia e estavam em UTI (Unidade de Tratamento Intensivo).
A cadeia de infectados no Rio se expandia na mesma velocidade dos casos do Country Club, após assembleia com 270 dos 850 associados, em 9 de março. “Posso ter me infectado lá ou na viagem a Paris”, diz a sócia, já recuperada da Covid-19.
“Fiz um mapinha na cabeça, acho que não contaminei ninguém.”
Conexão Itacaré-São Paulo
Nas paradisíacas Maldivas, Marcella e Marcelo, os Mazinhos, passam a lua-de-mel literalmente trancafiados no romântico bangalô de hotel, em rigoroso esquema de quarentena imposto pelas autoridades sanitárias locais.
Assim que foram informados de que um primeiro convidado estava com a Co
vid-19, mesmo assintomáticos, os brasileiros ficaram em isolamento.
“Estamos 14 dias dentro do quarto, de quarentena, como todos deveriam ficar também”, declarou a noiva, em vídeo, após avalanche de mensagens ofensivas no Instagram.
As bodas dos Mazinhos se converteram em outro epicentro da pandemia no país, à medida em que eram divulgados testes com resultados positivos da cantora Preta Gil, da atriz Fernanda Paes Leme e da blogueira Gabriela Pugliesi, irmã da noiva.
Longe do escrutínio público, outros convidados foram fazendo exames ao retornar a São Paulo, numa lista de pelo menos 15 casos de contágio após compartilhamento de drinks, beijos e abraços na festança.
A empresária Vera Minelli, 53, mãe da noiva, não procura culpados, enquanto lida com o fato de ter duas filhas com a doença (além de Gabriela, a caçula Ornella também recebeu diagnóstico positivo para o novo coronavírus). “Minha preocupação está 100% na saúde da minha família. Só espero passar tudo isso para abraçar de novo minhas filhas.”
Em resposta ao questionamento sobre os cuidados com as pessoas contratadas para trabalhar no evento, a Boutiquede3 enviou curta mensagem: “Garantimos que, assim como todos os convidados foram avisados, o mesmo fizemos com os prestadores de serviço.”
Até o sábado (28) não havia nenhum caso de coronavírus entre moradores de Itacaré. O motorista Anderson Felix, que transportou os noivos até o aeroporto, questionou se o casal estava infectado. “Fui afastado da empresa”, relatou ele, em quarentena após a passagem dos “corona-ricos” pelo município.
Escala Porto Seguro Fortaleza
De Itacaré, a linha de contagio chegou a Trancoso, outro reduto frequentado por endinheirados.
Foi para lá que o empresário Cláudio Henrique Vieira do Vale embarcou em seu jatinho com um grupo de oito amigos para um fim de semana prolongado em sua casa de veraneio em um condomínio de luxo.
O programa, depois da festa em Itacaré e com uma escala em São Paulo, virou caso de polícia. A Delegacia de Proteção ao Turista de Porto Seguro instaurou inquérito para apurar a denúncia de que o presidente da CVPAR Finanças desrespeitou a quarentena, quando já havia recebido resultado positivo do teste.
O governador Rui Costa (PT) pediu a responsabilização criminal do empresário por “sua postura irresponsável”. Dos 10 baianos confirmados àquela altura, pelo menos 2 teriam sido infectados no contato com Vieira: o cozinheiro da casa de veraneio e uma atendente do aeroporto de Porto Seguro.
Ao ser informado do caso positivo para coronavírus na região, a vigilância epidemiológica foi até a casa de Vieira coletar amostras de oito funcionários e oito hóspedes.
Cinco deles, no entanto, foram embora antes do resultado. Dois deles tiveram resultado positivo, quando já tinham retornado para Fortaleza. “Tanto os casos suspeitos quanto os contaminados foram embora sem o nosso aval”, diz o secretário de Saúde, Kerrys Ruas.
O empresário e a mulher permanecem na cidade em quarentena. Procurado pela
Folha, encaminhou nota em que “repudia com veemência as mentiras divulgadas a seu respeito”. Segundo a nota, o resultado do teste saiu dia 14, quando já estava na Bahia.
“Se o sujeito souber que está contaminado e não cumprir as determinações, pode incorrer em crime”, diz o criminalista Pierpaolo Bottini, ao analisar as consequências práticas da lei 13.979, aprovada em fevereiro diante da pandemia.
A legislação define parâmetros e critérios para quem descumprir o artigo 268 do Código Penal. É prevista pena de um mês a um ano de prisão mais multa para quem “infringir determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”.
O criminalista teme o uso do direito penal em momentos de histeria e em meio aos desafios para o sistema de saúde em uma emergência sanitária sem precedentes.