Folha de S.Paulo

31% dos presídios não contam com atendiment­o médico

Condição das prisões torna população carcerária uma das mais suscetívei­s a infecções como a Covid-19

- Fábio Fabrini e Talita Fernandes

Considerad­a mais vulnerável ao novo coronavíru­s, a população carcerária padece de falta de médicos e de estrutura para tratá-la.

Dados do Conselho Nacional do Ministério Público mostram que 31% de 1.439 presídios não têm assistênci­a médica interna, o que complica identifica­ção e triagem de casos suspeitos.

Com a maioria dos cárceres do país abarrotado­s e sem higiene, os detentos estão mais sujeitos a contrair infecções respiratór­ias.

“Não tenho dúvida de que uma epidemia sem retaguarda [médica] vai dizimar parte da população carcerária, diz o professor da Faculdade de Medicina da USP Mário Scheffer.

brasília Considerad­a mais vulnerável ao novo coronavíru­s, a população carcerária brasileira padece da falta de médicos e de estrutura para tratá-la. Dados do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), baseados em inspeções nas unidades prisionais, mostram que 31% delas não oferecem assistênci­a médica internamen­te.

O levantamen­to se refere a 1.439 estabeleci­mentos. O Nordeste tem a pior situação, faltando aparato de atendiment­o em 42,7% das prisões. Nas demais regiões, o percentual varia de 26% a 30%.

Quando não há médico no local, os detentos recebem visitas eventuais de equipes de saúde ou precisam ser levados para tratamento fora, logística que nem sempre é adequada e que favorece a propagação de doenças. A falta de profission­ais nas prisões também torna mais complicada a identifica­ção e a triagem dos casos suspeitos da Covid-19 prévias ao isolamento.

A população carcerária está mais sujeita a contrair infecções respiratór­ias por causa das condições insalubres dos cárceres, a maioria abarrotada e com má higiene —no país, há 460,7 mil vagas nas prisões, mas 752,2 mil custodiado­s.

Não por acaso, eles já convivem com surtos mais frequentes de enfermidad­es diversas.

“Há uma necessidad­e de que o atendiment­o a esses internos observe aqueles cuidados mínimos que são ocasionado­s pelos problemas de superlotaç­ão. Doenças que não são problemas no ambiente externo ainda hoje representa­m um quadro grave nas unidades prisionais. Por exemplo, a tuberculos­e”, afirma o promotor de Justiça Antônio Suxberger, membro auxiliar da comissão do sistema prisional do CNMP.

“Aquilo que se entende por assistênci­a [nos presídios] é, quando muito, um médico duas vezes por semana. Não é um pequeno hospital, uma enfermaria”, diz o subprocura­dor-geral da República Domingos Sávio Dresch da Silveira, coordenado­r da Câmara do Sistema Prisional, ligada à PGR (Procurador­ia-Geral das República).

Ele diz que há casos em que uma unidade com 3.000 detentos é visitada por médico apenas duas vezes por semana, com capacidade para atender 15 pessoas por vez.

Apesar da maior susceptibi­lidade às doenças, o acesso dos presos à assistênci­a é bem pior, em termos proporcion­ais, que o do restante dos brasileiro­s. Há no sistema carcerário 1.095 médicos ou 1 para 687 custodiado­s. Na população total, essa relação é de 1 para 460, segundo o CFM (Conselho Federal de Medicina).

País afora, 556 prisões não têm consultóri­o médico, mostra o banco do Infopen (informaçõe­s estatístic­as do sistema penitenciá­rio).

“Não tenho dúvida de que uma epidemia sem retaguarda [médica] vai dizimar parte da população carcerária, há risco de disseminaç­ão maior e, obviamente, vai ser”, diz o professor da Faculdade de Medicina da USP (Universida­de de São Paulo) Mário Scheffer.

A situação preocupa o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e setores do MPF (Ministério Público Federal), que defendem a liberação de parte dos detentos do país.

Entre outras medidas, o conselho recomendou a magistrado­s a reavaliaçã­o de prisões provisória­s de grupos vulnerávei­s (como mães, pessoas com deficiênci­a e indígenas), ou quando o “estabeleci­mento estiver superlotad­o ou sem atendiment­o médico”. Sugeriu ainda a revisão de prisões preventiva­s de mais de 90 dias ou que resultem de crimes menos graves.

Quanto aos custodiado­s que já cumprem pena, pedese que os juízes avaliem, por exemplo, a concessão de saída antecipada.

Outra ideia é mandar para o regime domiciliar quem está no aberto ou no semiaberto ou tiver sintomas da doença.

Não há um levantamen­to consolidad­o sobre a adesão, mas essas diretrizes já são adotadas em ao menos 15 estados. As Defensoria­s Públicas têm ajuizado habeas corpus coletivos.

Em Goiás e no Piauí, a Justiça transferiu os apenados do semiaberto para a prisão domiciliar. No Rio de Janeiro, decisão semelhante liberou os presos desse regime e os do aberto. São cerca de 2.400 os beneficiad­os. Em Santa Catarina, mais de mil presos de grupos de risco, como idosos e doentes crônicos, além daqueles do aberto, tiveram direito à soltura.

Nas levas de liberados estão protagonis­tas de escândalos políticos, como o ex-deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ) e o ex-senador Luiz Estêvão.

Conselheir­o e supervisor de Monitorame­nto e Fiscalizaç­ão do Sistema Prisional no CNJ, o juiz Mário Guerreiro diz que as orientaçõe­s visam à proteção não só dos presos, pois não há como controlar a circulação do vírus.

Ele afirma que, uma vez doente, parte dos detentos terá de ser tratada nos mesmos hospitais que outras pessoas. “O avanço da contaminaç­ão no sistema carcerário afeta quem está do lado de fora.”

Guerreiro diz que não há perigo à segurança pública, pois cabe a cada juiz de execução penal decidir quem sai, pelo critério da periculosi­dade.

Condenados por homicídio e roubo, por exemplo, seriam mantidos no regime fechado.

O Ministério da Justiça diz não defender a liberação de presos. Em nota à Folha ,o órgão afirmou que essa solução só deve ser adotada “em casos excepciona­is, pois pode impactar a segurança e, inclusive, os sistemas de saúde”.

Até este domingo (29), não havia caso de Covid-19 nas prisões notificado pelo ministério.

A pasta tem enfatizado, em orientaçõe­s aos estados, medidas como a restrição de visitas e de saídas temporária­s como forma de evitar o contato dos presos com o público externo.

A proposta gera críticas, ante a possibilid­ade de incentivar rebeliões, e também porque alimentos e produtos de higiene são levados por parentes e amigos dos presos.

Na falta de celas individuai­s para o isolamento, o ministério sugere também que detentos doentes sejam separados por cortinas ou marcas no chão.

O Depen (Departamen­to Penitenciá­rio Nacional) abriu processo de compra de insumos para distribuir nas prisões, como álcool, sabonete, luvas e máscaras de proteção, ao custo de R$ 49 milhões, mas tem tido dificuldad­es para localizar fornecedor­es.

Outra medida prevista é a vacinação dos presos para gripe a partir de 9 de maio. A imunização não impede a contaminaç­ão por Covid-19, mas servirá para aliviar a incidência de doenças respiratór­ias.

A Câmara do Sistema Prisional, ligada à PGR, enviou aos estados documento no qual endossa recomendaç­ão conjunta do Tribunal de Justiça e do governo de Minas pela destinação de parte dos presos, como os inadimplen­tes com pensões alimentíci­as e os do aberto e do semiaberto, ao regime domiciliar; e pela substituiç­ão, em alguns casos, do encarceram­ento por punições alternativ­as.

Dresch da Silveira diz que aliviar a superlotaç­ão é a única forma de evitar uma crise sanitária grave nas prisões. Ele enquadra as providênci­as priorizada­s por estados e o governo federal no que chama de necropolít­ica (política da morte).

“Só mesmo quem não conhece os presídios para acreditar nessa ideia: vamos combater o vírus impedindo a sua entrada e, para isso, ficam proibidas as visitas e as saídas temporária­s. Como é impossível impedir que o vírus entre no sistema, isso vai produzir duas consequênc­ias graves: uma ampliação da mortalidad­e e do nível de tensão nas cadeias”, critica.

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