Razões da desordem
Acrise sanitária move as placas tectônicas da política no país, afetando tanto seu conteúdo substantivo (a agenda) quanto aforma( estilo de governança ). A pandemia vertebra a disputa política em torno de uma nova dimensão: como lidar com a emergência sanitária e suas consequências econômicas. A agenda pública torna-se monotemática. Saem de cena as questões que levaram à ascensão de Bolsonaro: corrupção, segurança pública e guerras culturais.
A format ambémmuda: jánão há lugar para o estilo adversarial de governar. A retórica não desaparecerá, mas sua eficácia se reduzirá brutalmente. Estratégias de culpabilização e confronto terão claros retornos decrescentes. O senso de emergência produzido por uma ameaça avassaladora aumenta a demanda por lideranças que tenham capital moral e capacidade para coordenar ações e construir consensos na sociedade em geral ena comunidade de especialistas. A popularidade das lideranças políticas tende acrescerem toda parte em situações de guerra ou ameaças externas —fenômeno conhecido no jargão como “rally round the flag” (união pela pátria). Bolsonaro, no entanto, passou a ser visto ele próprio como ameaça.
Isso não significa que o estilo adversarial desaparecerá. Identifico três fatores que combinados explicam sua adoção no momento. O primeiro éo mimetismo institucional em relação a iniciativas tomadas por Donald Trump —uma das marcas de seu governo e de sua entourage familiar, que já se manisfestara na semana anterior no episódio envolvendo a China. Ele aparece na importação da disjuntiva saúde versus economia que dominou a agenda pública americana nas semanas anteriores.
Ose gundoéocálcul opor parte de setores estratégicos do governo de que o fator sistemicamente desestabilizador não seria a escalada da crise sanitária per se, mas uma recessão profunda e colapso da ordem social.
O terceiro é uma estratégia de deslocamento da culpa em relação aos custos políticos da profunda recessão que se avizinha para governadores e prefeitos. Curiosamente, estes não são os únicos sujeitos da transferência de responsabilidade: o presidente dirige pedidos ao seu ministro da Saúde, a quem buscaria sensibilizar, em mais um exemplo de “presidencialismo de delegação”. (O resultado é profunda dissonância: quem está no comando? Qual a mensagem?)
Essa transferência de responsabilidade é instrumental: se as medidas de quarentena forem bem-sucedidas, o presidente ganha: poderá alegar que acrise não e ratão grande quanto propalado. Se forem malsucedidas—em quadro de profunda crise econômica e sanitária—sustentará que contribuíram para a instauração do caos.