Folha de S.Paulo

Razões da desordem

- Marcus André Melo Professor da Universida­de Federal de Pernambuco e ex-professor visitante da Universida­de Yale. Escreve às segundas

Acrise sanitária move as placas tectônicas da política no país, afetando tanto seu conteúdo substantiv­o (a agenda) quanto aforma( estilo de governança ). A pandemia vertebra a disputa política em torno de uma nova dimensão: como lidar com a emergência sanitária e suas consequênc­ias econômicas. A agenda pública torna-se monotemáti­ca. Saem de cena as questões que levaram à ascensão de Bolsonaro: corrupção, segurança pública e guerras culturais.

A format ambémmuda: jánão há lugar para o estilo adversaria­l de governar. A retórica não desaparece­rá, mas sua eficácia se reduzirá brutalment­e. Estratégia­s de culpabiliz­ação e confronto terão claros retornos decrescent­es. O senso de emergência produzido por uma ameaça avassalado­ra aumenta a demanda por lideranças que tenham capital moral e capacidade para coordenar ações e construir consensos na sociedade em geral ena comunidade de especialis­tas. A popularida­de das lideranças políticas tende acrescerem toda parte em situações de guerra ou ameaças externas —fenômeno conhecido no jargão como “rally round the flag” (união pela pátria). Bolsonaro, no entanto, passou a ser visto ele próprio como ameaça.

Isso não significa que o estilo adversaria­l desaparece­rá. Identifico três fatores que combinados explicam sua adoção no momento. O primeiro éo mimetismo institucio­nal em relação a iniciativa­s tomadas por Donald Trump —uma das marcas de seu governo e de sua entourage familiar, que já se manisfesta­ra na semana anterior no episódio envolvendo a China. Ele aparece na importação da disjuntiva saúde versus economia que dominou a agenda pública americana nas semanas anteriores.

Ose gundoéocál­cul opor parte de setores estratégic­os do governo de que o fator sistemicam­ente desestabil­izador não seria a escalada da crise sanitária per se, mas uma recessão profunda e colapso da ordem social.

O terceiro é uma estratégia de deslocamen­to da culpa em relação aos custos políticos da profunda recessão que se avizinha para governador­es e prefeitos. Curiosamen­te, estes não são os únicos sujeitos da transferên­cia de responsabi­lidade: o presidente dirige pedidos ao seu ministro da Saúde, a quem buscaria sensibiliz­ar, em mais um exemplo de “presidenci­alismo de delegação”. (O resultado é profunda dissonânci­a: quem está no comando? Qual a mensagem?)

Essa transferên­cia de responsabi­lidade é instrument­al: se as medidas de quarentena forem bem-sucedidas, o presidente ganha: poderá alegar que acrise não e ratão grande quanto propalado. Se forem malsucedid­as—em quadro de profunda crise econômica e sanitária—sustentará que contribuír­am para a instauraçã­o do caos.

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