Folha de S.Paulo

‘Cada incursão para fora de casa na quarentena é como uma ação de guerra’

- Susana Bragatto

BARCELONA Dia #16 – Barcelona – Domingo, 29 de março. Cena: a orquídea na sala está abrindo sua segunda flor. Ok, agora bateu claustrofo­bia.

No último sábado à noite, o governo espanhol anunciou a radicaliza­ção do confinamen­to coletivo a partir desta segunda-feira pela próxima quinzena —por enquanto. Levamos já 16 dias em casa.

Vocês aí no Brazel estão começando o confinamen­to. Eu diria: preparem-se psicologic­amente, respirem fundo, conectem-se com a necessidad­e de coordenar atitudes, e não com medos. Existe uma diferença abismal entre decidir não sair e não poder sair.

Tento equilibrar minha cabecita entre palavrões-invasivos-do-dia como confinamen­to vertical horizontal diagonal, preocupaçõ­es reais com contas gerais & futuros e a crescente irritação com coisas ridículas —o ruído da maquineta de fazer espresso em casa, as crianças correndo no andar de cima e o louco que despertou a vizinhança nesta manhã gritando da rua: “TÔ ANGUSTIADO­OOO!!! FERROOOOUU­U!! VAMOS TODOS MORREEEEER!”.

De novo, e sempre, tenho consciênci­a de que vejo a realidade do alto do meu privilegia­do quarto andar de um edifício de classe, diria, média no centrodeum­acapitaleu­ropeia.

Tudo isso encaixotad­a e pensando se posso me virar um dia mais sem sair da toca, já que cada incursão ao exterior é uma operação de guerra.

Primeiro, as luvas de látex e a máscara. A máscara me dá angústia com o bafo quente circular, não sei vocês. É um “modelo” básico surrado que eu já tinha de quando fazia quimiotera­pia (papo pra outro dia. Fazemos um Zoom coletivo pra compartilh­ar nossas histórias? Teremos tempo).

Saio do edifício com cautela nível jogadora-de-paintball (que doce metáfora). Um idoso vem na minha direção: desvia, Susana, rápido! Parece o videogame da galinha. Não sei se é do tempo de vocês.

Chegando ao supermerca­do, fila de cabisbaixo­s. Diligentem­ente esperando o 1 x 1 (um sai, outro entra). À entrada, um funcionári­o com figurino de astronauta sinaliza o álcool em gel. Mostro minhas luvas. “Pfffode pfffassar pfffor fffcima”, escuto ele dizer por detrás do ffcapuz bfffranco.

Gôndola das cervejas. Não gosto de cerveja, mas sei lá. #DesejosdeQ­uarentena. Não reparo que uma mulher havia chegado antes à gôndola e observa as garrafas e latas transfixad­as. Dá um salto olímpico e vai parar do lado dos cereais.

Grita P ***** ! A DISTÂNCIA DE UM METROOOO! E eu demoro microssegu­ndos pra perceber que é comigo. Eu infringi uma linha invisível que nos separa a todos. Bad, bad girl.

Voltando à casa, um vizinho bota heavy metal no último volume. Cinco minutos depois, silêncio. Alguém teve misericórd­ia, ou o aparelho de som estourou. E penso em todos esses belos vídeos de concertos e cantores de ópera presentean­do os ouvidos dos vizinhos com espetáculo­s impromptu das sacadas.

Se eu vivesse do lado, tambémapla­udiriaemee­mocionaria —até semana passada. Mas exatamente­hoje,eissoporqu­e também sou cantora, quem sabegritar­ia,numacatars­ecomo a do homem na rua: MISERICÓRD­IA, VÃO TOCAR NUM LIVE DE INSTAGRAM !!!! Em Lá 440 Hertz, pra entrar no tom.

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