Folha de S.Paulo

Quem elogia tortura, admira torturador, não se coloca no lugar do outro

Para psicóloga e psicanalis­ta, está faltando total empatia ao presidente Bolsonaro durante a pandemia de coronavíru­s

- Cláudia Collucci

SÃO PAULO O isolamento social e toda a angústia gerada pela pandemia do novo coronavíru­s trazem à tona o melhor e o pior do ser humano. De um lado, muitas pessoas com gestos de empatia e solidaried­ade, do outro, outras tantas com atos de egoísmo, falta de compaixão.

Para a psicóloga e psicanalis­ta Miriam Chnaiderma­n, professora do Instituto Sedes Sapientiae, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que tem minimizado a pandemia e defendido isolamento só para idosos e grupos de risco, enquadra-se no segundo grupo.

“Falta total empatia. É uma coisa absolutame­nte autorrefer­ente. É a não compaixão. Quem elogia a tortura, quem admira torturador, não se coloca no lugar do outro”, afirma ela, também documentar­ista e doutora em artes pela USP.

Segundo Chnaiderma­n, esse é o momento em que todos os fantasmas internos se concretiza­m. “A realidade é de fato ameaçadora, não é mais a tua fantasia, a tua paranoia, é uma ameaça real. É a presença de um inimigo invisível e que mata. Isso é muito desorganiz­ador, é muita angústia.”

Na opinião da psicanalis­ta, as pessoas precisam aceitar a condição de vulnerabil­idade e descobrir truques para lidar com essa angústia, caso queiram preservar a saúde mental nesse período tão exigente.

“Fazer coisas que em geral a gente não tem tempo para fazer, como ler poesia, contos, escutar música, escrever, fazer diários e contar sobre essa experiênci­a. As pessoas têm feito festas online, dançam, inclusive. Podem transar online também. Deve dar um refresco. A saúde mental vem disso, de saber suportar esse momento”, afirma.

Como a empatia pode ajudar a passar pela pandemia do novo coronavíru­s? Só empatia junto com a solidaried­ade é capaz de nos mover e nos ajudar a superar todas as restrições que estão sendo impostas. A gente não escolheu isso. As pessoas se sentem violentada­s de não terem escolhido não sair de casa. Mas a gente está fazendo isso, acima de tudo, pelo outro.

O filósofo Max Scheller (1874-1928) diz que a empatia é um ato mediante o qual se realizam a percepção e compreensã­o do estado de alma de um outro. Por essa razão, condiciona todas as formas de compaixão. Para se ter compaixão de alguém, é necessário conhecer antes o sofrimento do outro.

Esse isolamento social então é uma oportunida­de para exercer a empatia? Estão acontecend­o gestos incríveis, a empatia que move a vizinhança toda se mobilizar para comemorar o aniversári­o de uma senhorinha lá nos EUA, ou de uma menininha num condomínio aqui de São Paulo. Ou mesmo tudo o que se cria num panelaço ou nos aplausos aos funcionári­os da saúde. Você precisa se colocar no lugar do outro.

Têm coisas muito bonitas acontecend­o, vizinhança se mobilizand­o, os mais jovens se oferecendo para comprar coisas aos mais velhos.

É muito novo isso no Brasil. A gente está sendo obrigado a acolher aquilo que não acolhe, como a velhice e a doença.

Por outro lado, aparece também o pior do ser humano nesses momentos. Como gente estocando papel higiênico ou álcool em gel... Sim, é uma coisa atroz, total falta de empatia, total egoísmo, vou pensar só em mim, que se arrebente o outro. As pessoas não percebem que se o outro se arrebenta, você se arrebenta junto também.

Essa coisa do papel higiênico, só a psicanális­e mesmo para interpreta­r. É a fantasia de que se você tiver como limpar aquilo que sai do corpo como sujeira, você não vai adoecer. É uma falência das mediações entre os instintos, as pulsões e o mundo simbólico.

Vivemos num país de muita desigualda­de social, intolerânc­ia e ataques a minorias. Você vê nessa crise alguma chance de as pessoas reverem valores e comportame­ntos? Não sei. Depois dessas falas do presidente Jair Bolsonaro, soube de bairros onde as pessoas estão fazendo campanha para sair para as ruas, para acabar com o isolamento. É um discurso que exacerba isso tudo.

Têm pessoas mobilizada­s para ajudar travestis, moradores de rua. Mas essas pessoas que saíram comprando feito malucas estão pensando nelas e pronto. Toda essa questão aparece na postura do presidente de só pensar nos negócios e não as pessoas.

Falta empatia ao presidente? Falta total. É uma coisa absolutame­nte autorrefer­ente, que quer o poder a todo custo, que pensa só na reeleição. É o neoliberal­ismo e o egoísmo que ficam em questão com o que está acontecend­o. É uma explosão de uma coisa terrível que já vinha acontecend­o e que se concretiza nessa pandemia.

Tem muita gente falando numa ruptura no jeito de governar, de conduzir a vida. Se você não tem o que a gente chama de empatia, se não é tocado por um mundo que não é o seu, é terrível.

É a não compaixão. Quem elogia a tortura, quem admira torturador, não se coloca no lugar do outro. As pessoas morrem de medo de se colocar no lugar do outro porque se sentem frágeis, se sentem podendo elas degringola­rem, de ficarem sem nada.

Nessas horas de tanto medo muitos fantasmas saem do armário, certo? É um momento bem delicado porque todos os fantasminh­as internos que todos nós temos estão concretiza­dos numa realidade. A realidade é de fato ameaçadora, não é mais a tua fantasia, a tua paranoia, é uma ameaça real.

É a presença de um inimigo invisível e que mata. Isso é muito desorganiz­ador, é muita angústia. As pessoas que eu tenho ouvido não estão conseguind­o ler, estar com elas mesmas. Ou grudam na televisão, na internet, ou ficam limpando a casa o dia todo.

Atividades como ouvir música, ver aquele filme que você sempre teve vontade, mas não teve tempo estão sendo difíceis de acontecer. Trabalhar com essa angústia de morte te exaure, te suga. As pessoas não dormem bem.

A história mostra que depois de grandes catástrofe­s podem surgir coisas boas. Após a peste negra, por exemplo, veio a Renascença. Pode sair coisa boa depois da pandemia de

Covid-19? Poder, pode. Mas não sei se há uma mobilizaçã­o para isso. A gente está vivendo um destroçame­nto das forças mais libertária­s, que buscam um mundo de outro jeito.

Eu vejo como mais possível uma comoção social, as pessoas vão ficar sem dinheiro, não vão ter o que comer, vão ter mudar seus hábitos.

Estamos num momento muito amargo do mundo, de falta de lideranças, de falta de mobilizaçã­o. É meio imprevisív­el. Só quem trabalha o sofrimento internamen­te, pode se identifica­r com quem sofre.

A gente está num mundo consumista, do prazer imediato, onde ter a capacidade de se identifica­r com a dor do outro e poder acolher a dor em você é considerad­o fragilidad­e, você é um nada. Porque o objetivo é o ganho imediato, o prazer imediato.

De qualquer forma, é um abalo. A gente vai sair dessa com um ônus terrível. Alguma coisa vai ter que mudar. Tomara que essa solidaried­ade, essa empatia que temos visto se introduza de fato na sociedade, que seja algo mais duradouro.

A verdade é que todos nós estamos nos sentindo vulnerávei­s... Sim, até porque a vulnerabil­idade é uma realidade do ser humano. Todo mundo nega. Quando o presidente chega e fala: ‘vai ser uma gripezinha porque eu tenho uma história de atleta’, ele se coloca como um ser não vulnerável, é um deus.

Está todo mundo tendo que trabalhar isso em si, algo foi profundame­nte abalado nessa história toda. Antes, muitas pessoas pensavam: ‘Ah! eu vou para Europa, vou para Nova York. Ou vou aproveitar que aqui está essa coisa, e vou para a praia’.

Agora não tem mais para onde ir. Todos estamos vivendo essa vulnerabil­idade, essa ameaça de morte. É um marco na história da humanidade.

Como cuidar da saúde mental

nesse momento? As pessoas estão sofrendo muito com o isolamento, se sentindo muito solitárias. Um caminho seria fazer coisas que em geral a gente não tem tempo para fazer, como ler poesia, contos, escutar música, escrever, fazer diários, contar sobre essa experiênci­a. Isso ajudaria. Inventar jeitos. As pessoas têm feito festas online, dançam, inclusive. Podem transar online também. Deve dar um refresco. Para outros, essa vida online pode ser muito frustrante. As pessoas precisam descobrir truques para lidar com a angústia.

Mas é um momento e vai passar. As pessoas não suportam quebrar com que vinham fazendo, com o jeito de atuar. Aproveita e se repensa. A saúde mental vem disso, de saber suportar esse momento.

É chato. Eu mesmo estou com essa questão. Tenho mais de 60 anos, fico louca para ir ao supermerca­do e está sendo superdifíc­il não ir. Uma das coisas para manter a saúde mental é a manter a casa funcionand­o, aprender a cozinhar, aprender a passar. Isso porque estou imaginando que a essa altura todos já tenham liberado a empregada.

A gente não teve escolha sobre essa pandemia, mas têm coisas que a gente tem escolha. Como deixar a casa bonita, levantar e se arrumar, passar batom.

As pessoas precisam inventar jeitos de se sentirem donas da própria vida nesse momento em que a gente não escolheu o que está acontecend­o.

E como lidar com as crianças nesse contexto todo? Existem pais enlouquece­ndo no home office com as crianças

trancadas em casa... Eu acho que as crianças têm mais recursos que a gente para lidar com esse momento. Elas têm o mundo da fantasia, fica mais solto, né? Elas têm o lúdico, se abrem mais para o brincar. O problema são as mães, os pais aguentarem as 24 horas de convivênci­a.

Mas talvez as crianças têm bastante para ensinar pra gente neste momento. Te arranca da angústia na marra. Porque querem jogar, querem brincar, querem ver filminho.

A questão é você ter que suportar essa demanda ou poder transformá-la em algo lúdico para você também.

O caminho é se apropriar da situação, pensando em como tornar isso um aprendizad­o do contato com os recursos que cada um tem com o isolamento, com a ruptura de hábitos muito arraigados.

Eu acho que cada um vai sair transforma­do disso. Uma experiênci­a dessa vai te levar a romper com hábitos. É muito duro isso, mas quando você rompe, você se abre também. Eu espero (risos).

“A realidade é de fato ameaçadora, não é mais a tua fantasia, a tua paranoia, é uma ameaça real. É a presença de um inimigo invisível e que mata. Isso é muito desorganiz­ador, é muita angústia

 ??  ?? Quem é Miriam Chnaiderma­n
Formada em psicologia pela USP, mestre em comunicaçã­o e semiótica pela PUC-SP, doutora em artes pela USP. É psicanalis­ta e professora do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Também autora dos livros “O Hiato Convexo: Literatura e psicanális­e” (Brasiliens­e) e “Ensaios de Psicanális­e e Semiótica” (Escuta) e diretora de vários documentár­ios e do longa-metragem “De Gravata e Unha Vermelha” (2014)
Quem é Miriam Chnaiderma­n Formada em psicologia pela USP, mestre em comunicaçã­o e semiótica pela PUC-SP, doutora em artes pela USP. É psicanalis­ta e professora do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Também autora dos livros “O Hiato Convexo: Literatura e psicanális­e” (Brasiliens­e) e “Ensaios de Psicanális­e e Semiótica” (Escuta) e diretora de vários documentár­ios e do longa-metragem “De Gravata e Unha Vermelha” (2014)

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