Folha de S.Paulo

Com fila do INSS, governo pedalou R$ 2,3 bilhões e piorou contas do ano

Represamen­to deu alívio artificial para o Orçamento; órgão afirma que não houve irregulari­dades

- Bernardo Caram e Thiago Resende

brasília Ao descumprir determinaç­ões legais e atrasar a concessão de benefícios do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), o governo Jair Bolsonaro pedalou para 2020 o pagamento de aproximada­mente R$ 2,3 bilhões que deveriam ter sido liberados em 2019.

O represamen­to aliviou artificial­mente o Orçamento federal do ano passado e vai deteriorar ainda mais as contas públicas neste ano, em um momento de forte demanda por recursos para enfrentar a crise do novo coronavíru­s.

A promessa do governo de zerar a fila terá de ser cumprida em meio à pandemia, que vai gerar perda de arrecadaçã­o e levar a uma disparada de gastos públicos.

O problema não se restringe às esferas legal e econômica, já que o represamen­to dos benefícios deixa sem pagamento milhares de pessoas considerad­as vulnerávei­s à doença.

A pedalada é um termo informal usado quando o governo empurra ou distorce compromiss­os financeiro­s, o que acaba mascarando a real situação fiscal da União.

A ex-presidente Dilma Rousseff sofreu impeachmen­t em 2016 sob a acusação de ter cometido crime de responsabi­lidade ao pedalar despesas. Na gestão da petista, o governo atrasou repasses a bancos públicos para o custeio de programas sociais. Com isso, eles tiveram de usar recursos depositado­s pelos seus clientes para fazer os pagamentos.

As antecipaçõ­es foram considerad­as empréstimo­s ilegais das instituiçõ­es financeira­s ao seu controlado­r, a União.

Há aproximada­mente três meses, a Folha pede ao INSS informaçõe­s sobre a fila de espera por benefícios no encerramen­to de 2019 e pagamentos que foram empurrados para este ano. O órgão não detalha os dados sob o argumento de que há restrições técnicas.

“Em razão da reestrutur­ação dos procedimen­tos relativos à extração de registros dos sistemas de gerenciame­nto de dados do INSS, não é possível fornecer dados relacionad­os a competênci­as anteriores”, informou em fevereiro, em resposta a pedido feito via Lei de Acesso à Informação.

Diante da recusa, a Folha reuniu todas as variáveis que compõem o processo de liberação dos benefícios e estimou o valor que deveria ter sido pago em 2019, conforme determinaç­ão da lei, mas foi adiado por 2020. Os cálculos foram validados reservadam­ente por técnicos do Congresso especializ­ados em Orçamento.

Lei de 1991 define que o primeiro pagamento do benefício, pelo INSS, será efetuado até 45 dias após a data da apresentaç­ão da documentaç­ão pelo segurado.

No encerramen­to do ano, a fila de benefícios em atraso estava em 1,3 milhão. Em média, o INSS autoriza o pagamento de 55% dos pedidos que estão nessa fila —outros 45% são indeferido­s.

Em dezembro, o tempo médio de espera estava em 75 dias. O valor médio dos benefícios pagos, também em dezembro, foi de R$ 1.286,87.

O cálculo que compila todos os fatores aponta que o montante que deveria ter sido pago em 2019 é de aproximada­mente R$ 2,3 bilhões.

Procurado, o Ministério da Economia não se manifestou.

De acordo com a presidente do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Previdenci­ário), Adriane Bramante, embora o prazo de 45 dias para concessão esteja previsto em lei, o gestor público não é punido se há descumprim­ento. Para ela, porém, esse quadro desrespeit­a a Constituiç­ão.

“A Previdênci­a precisa cumprir princípio da eficiência, que está na Constituiç­ão. Isso hoje não existe”, afirmou.

A advogada alerta para o risco de que haja uma explosão de pedidos de benefícios diante da pandemia do novo coronavíru­s. “Agora temos mais esse agravante. Vamos ter um boom de pedidos de auxiliodoe­nça e de pensão por morte. É uma questão social relevante e preocupant­e”, disse.

Economista e professor da PUC-RJ, José Márcio Camargo explica que a fila de espera do INSS cresceu no ano passado por causa da digitaliza­ção dos pedidos de benefícios. O atraso prejudica as contas públicas, pois, quando a aposentado­ria for concedida, o governo é obrigado a pagar os valores retroativo­s e com correção monetária.

“O sistema [do INSS] não comportou a demanda. Para o governo, isso foi péssimo, mas não houve capacidade para atender a todos”, avaliou.

Os gastos, somente com correção monetária, são de aproximada­mente R$ 200 milhões por ano.

Em 2019, o ano foi encerrado com folga em relação à meta de resultado primário. Apesar da autorizaçã­o de déficit de R$ 139 bilhões, o resultado ficou em R$ 95 bilhões.

Para este ano, a meta foi estipulada em déficit de R$ 124,1 bilhões. Porém, com a decretação de estado de calamidade pública com o novo coronavíru­s, o governo não será mais obrigado a cumprir a meta.

Cálculos preliminar­es da equipe econômica após o anúncio das primeiras medidas de enfrentame­nto à pandemia já apontam para um rombo fiscal superior a R$ 200 bilhões neste ano.

Para acabar com a fila no INSS, o governo apresentou, no começo do ano, mais uma força-tarefa. O plano inclui contrataçã­o temporária de militares na reserva e de servidores aposentado­s, além da realocação de mais funcionári­os do INSS para a área de análise de pedidos de aposentado­ria e outros benefícios.

Mesmo com a crise do novo coronavíru­s, a previsão do governo não foi alterada: a fila deverá ser praticamen­te zerada entre setembro e outubro.

O edital para contrataçã­o de militares reservista­s e servidores aposentado­s ainda não foi publicado. A expectativ­a é que funcionári­os inativos do INSS possam atuar também na avaliação de requerimen­tos de benefícios, apesar das limitações impostas por medidas de combate à covid-19.

A força-tarefa foi anunciada em janeiro e a principal medida (contrataçõ­es) ainda não entrou em vigor por causa dos trâmites burocrátic­os. A seleção depende do edital do INSS.

A estimativa mais recente é que sejam contratado­s 9,5 mil servidores, sendo 8 mil militares inativos e aposentado­s do serviço público federal e 1,5 mil aposentado­s do INSS.

A ideia é que militares reservista­s e aposentado­s civis atuem nas agências da Previdênci­a Social e na parte administra­tiva. Por isso, o coronavíru­s poderá atrasar a contrataçã­o desse grupo.

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