Folha de S.Paulo

Idosos não são descartáve­is

Campanha ‘O Brasil não pode parar’ põe em risco a vida dos mais velhos

- Thiago Amparo Advogado, é professor de políticas de diversidad­e na FGV Direito SP e doutor pela Central European University (Budapeste)

A políticos, corpos de pessoas idosas não pesam. Não pesando, para eles, são descartáve­is.

Bolsonaro, em rede nacional na última terça (24): “O que se passa no mundo tem mostrado que o grupo de risco é o das pessoas acima dos 60 anos. Então, por que fechar escolas?” Presidente não entende bulhufas de como funciona transmissã­o de doenças. Três dias depois, complement­ou: “Alguns vão morrer? Vão, ué, lamento. Essa é a vida”. Aqui, cabem tantos crimes —de responsabi­lidade e internacio­nais— que fica até difícil contá-los. Um já basta. Bastaria, ao menos. Ageísmo, termo cunhado em 1968 pelo médico Robert N. Butler, não é exclusivid­ade do Palácio do Planalto.

Tenente-governador do Texas, Dan Patrick, disse na terça (24) que idosos arriscaria­m sua vida para manter a economia em funcioname­nto. Imagino que não seja a dele própria. Em 26 de fevereiro, prefeitura de Milão lançou a campanha “Milão não pode parar”. Cinco mil mortos depois na região da Lombardia, prefeito da cidade italiana reconheceu o erro. São mortes invisibili­zadas. New York Times publicou na quarta (25) que as taxas de mortalidad­e estarreced­oras por conta do coronavíru­s na Espanha, Itália e França não contam, em geral, as mortes que ocorrem em asilos e em residência­s, apenas as que ocorrem em hospitais.

Muitos idosos, portanto, morrem invisíveis. Neste domingo, a Unidade Militar de Emergência­s da Espanha informou ter encontrado 11 idosos mortos em um asilo numa província de Madrid.

Novo hit entre negacionis­tas da pandemia, isolar apenas grupos de risco como pessoas acima de 60 anos é, numa só toada, impraticáv­el e genocida.

Impraticáv­el, esbarra em algo que convencion­amos chamar de realidade: cerca de 66% dos idosos brasileiro­s moram com outras pessoas que não o seu cônjuge, segundo dados do Censo 2010 do IBGE.

Ao propor isolar apenas idosos, cabe às autoridade­s federais explicar, primeiro, onde isso funcionou e, segundo, como de fato isso se daria dada a realidade de coabitação de idosos hoje no Brasil.

Mesmo com menor taxa de mortalidad­e, jovens doentes podem sobrecarre­gar hospitais e, portanto, dificultar o tratamento de grupos de risco. Quarenta por cento das internaçõe­s por coronavíru­s nos EUA são de jovens adultos na faixa de 20 a 54 anos.

Genocida, no sentido legal do termo, porque intenciona destruir em parte um grupo etário. Isolar apenas idosos levaria à morte mais de 529 mil pessoas no Brasil, conclui o estudo do Imperial College de Londres publicado nesta quinta (26).

Desigualda­des sociais intersecci­onam com idade: expectativ­a de vida em Moema, bairro nobre de SP, é de 80 anos; na periferia, em Cidade Tiradentes, é de 57,3 anos, segundo Mapa da Desigualda­de 2019.

A medida da justiça de nossa sociedade é a forma como tratamos nossos menos privilegia­dos. Foi um liberal, John Rawls, que escreveu isso.

Em círculos de direitos humanos, direitos de pessoas idosas são ou ignorados ou confundido­s com assistenci­alismo por quem vê idosos como crianças.

Idosos, no entanto, são sujeitos de direitos, de afeto, de lucidez. Suas vidas e autonomia, com apoio, importam.

Todo fascistoid­e guarda em si o desejo do controle sobre quem morre e quem vive.

Ao desprezar mortes de pessoas idosas, Bolsonaro encontra onde espiar sua morbidez sádica. Profetas da morte se desfilam em carreata. Quem os parará?

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