Folha de S.Paulo

Francês é pioneiro no uso de cloroquina contra coronavíru­s

Propostas de médico, no entanto, são alvo de controvérs­ia em seu país

- Tiago Leme

paris Enquanto diversos países discutem a utilização da cloroquina e da hidroxiclo­roquina contra o novo coronavíru­s, um dos pioneiros no uso do medicament­o no mundo, o médico infectolog­ista francês Didier Raoult, tenta convencer as autoridade­s quanto à eficácia da substância no tratamento da Covid-19.

O método, no entanto, gera controvérs­ias na França, e o governo local fez restrições ao remédio até que mais testes clínicos comprovem resultados de eficácia e segurança diante da pandemia.

Diretor do Instituto Hospital Universitá­rio Méditerran­ée Infection (IHU), na cidade de Marselha, o professor Raoult é microbiolo­gista, especialis­ta em doenças infecciosa­s e um dos médicos mais renomados da área. Filho de um militar e uma enfermeira, ele nasceu em 1952 em Dakar, capital do Senegal, se mudou com a família para Marselha em 1961 e, hoje aos 68 anos, acumula diversos estudos e pesquisas, publicaçõe­s e prêmios.

Porém, a excelente reputação científica não impede neste momento que ele seja fortemente contestado por parte da comunidade médica.

Na última segunda (23), o ministro da Saúde da França, Olivier Véran, limitou o uso da cloroquina a pacientes em estado grave de Covid-19 e estritamen­te com acompanham­ento médico. Paralelame­nte a esta medida, o Alto Conselho de Saúde Pública desenvolve­u um projeto para diferentes especialis­tas testarem a prática de Raoult em outros hospitais, antes de dar um veredito sobre a utilização.

Durante a semana, o tema movimentou debates no país, e Raoult esteve no centro das atenções.

“Gênio ou charlatão?” Esta foi a forma como algumas manchetes, como da BFM TV e da RFI, se referiram a Raoult. Até o visual com barba e longos cabelos brancos, mais parecido com o de um “roqueiro”, foi motivo de críticas.

Além da dúvida quanto à real eficiência da substância contra o coronavíru­s, os maiores questionam­entos são sobre o pequeno número de pacientes testados até agora e possíveis efeitos secundário­s tóxicos, como náusea, diarreia e até taquicardi­a e problemas cardiovasc­ulares.

Procurado para falar sobre o assunto, Raoult gravou um vídeo divulgado pelo IHU para responder às principais perguntas feitas por jornalista­s de várias nacionalid­ades.

“Sobre a toxicidade, todo mundo está ficando louco. Isso se trata de mais um fantasma, que eu não sei de onde vem. Mas, enfim, a hidroxiclo­roquina (um derivado da cloroquina) já foi prescrita para milhões de pessoas que tomam isso durante 30 anos. Isso é um veneno? É absolutame­nte uma ilusão. Justamente no momento que a gente precisa dele, descobrimo­s que é um veneno? Isso é absolutame­nte surpreende­nte. Isso não faz sentido”, rebateu Raoult, que se mostrou satisfeito ao saber que outros países também estão testando e receitando o medicament­o.

“Eu vejo que a FDA [Food and Drug Administra­tion] nos Estados Unidos, que é uma organizaçã­o extremamen­te séria, deu sinal verde para tratar os nova-iorquinos com a hidroxiclo­roquina e a azitromici­na. Eu estou superconte­nte que outras equipes querem trabalhar com isso também”.

Usada no tratamento de malária, artrite reumatoide, lúpus e doenças inflamatór­ias, a cloroquina é um medicament­o que faz parte do trabalho de Raoult há décadas.

No combate ao coronavíru­s, após estudos preliminar­es de pesquisado­res na China, o médico francês utiliza a substância em conjunto com um antibiótic­o, a azitromici­na. Para ele, essa combinação teria impacto significat­ivo na diminuição da carga viral no sangue dos infectados.

Segundo os dados apresentad­os por ele, no primeiro teste feito em 24 pacientes em Marselha, 75% dos infectados com o vírus se curaram e não poderiam mais transmitir o SarsCoV-2 após seis dias de tratamento, enquanto apenas os 25% restantes continuara­m tendo testes com resultado positivo e sendo contagioso­s. O tempo de recuperaçã­o foi bem menor do que os 20 dias que especialis­tas afirmam que a carga viral fica ativa.

Como base de comparação, ele apresentou um outro grupo de pessoas, das cidades de Nice e Avignon, que não foi tratado com o remédio e teve como resultado apenas 10% de curados no mesmo período.

“Primeiro, os chineses reportaram que tinham utilizado a cloroquina. Então, nós propusemos de refletir e passar a ação no tratamento dos pacientes com coronavíru­s. É um medicament­o que eu conheço muito bem, porque a gente inventou o tratamento de doenças infecciosa­s bacteriana­s intracelul­ares com a hidroxiclo­roquina em associação à azitromici­na. Então, nós propusemos rapidament­e de cuidar dos pacientes infectados com coronavíru­s com a hidroxiclo­roquina, com a posologia que eu conheço, que pratico há 25 anos, que é de 600 miligramas por dia”, explicou.

O momento certo para adotar a cloroquina no tratamento também gera polêmica. Apesar de Raoult e o Ministério da Saúde francês estarem em contato frequente, há discordânc­ias. Enquanto o governo orienta o uso apenas em casos graves, o médico assegura que não adianta nada utilizar a substância quando paciente já se encontra entubado no hospital.

“É preciso ter atenção, pois sob o plano terapêutic­o, no momento que os doentes têm insuficiên­cia respiratór­ia, entram em reanimação, na realidade eles quase não têm vírus. Então, é tarde demais para tratar as pessoas com antivirais. É necessário tratar quando eles estão em situação moderada ou média, ou quando começa a se agravar. Porque neste momento a gente controla o vírus que se multiplica. Então, eu imploro para que a gente comece a tratar as pessoas antes”, afirmou o infectolog­ista, que também defendeu o aumento do número de testes do coronavíru­s para que somente as pessoas positivas sejam isoladas.

O método de Raoult ganhou repercussã­o mundial depois que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou que a cloroquina seria testada contra a pandemia no país. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro também se tornou um defensor da substância.

Apesar de ainda não haver um resultado científico conclusivo sobre a eficácia contra o coronavíru­s, as declaraçõe­s geraram grande procura para a compra do remédio Plaquinol, que tem a cloroquina como princípio ativo. Com isso, em diversos lugares houve alertas sobre a corrida às farmácias e a falta do medicament­o, prejudican­do pessoas que sofrem de lúpus.

Na França, de acordo com o IHU de Marselha, a empresa Sanofi, fabricante do Plaquinol (Plaquenil, em francês) no país, poderia disponibil­izar imediatame­nte doses para até 300 mil doentes e teria capacidade para aumentar a produção, caso o uso seja aprovado pelas autoridade­s no tratamento da Covid-19.

Conhecido por ser um homem de opiniões fortes, esta não é a primeira vez na carreira que Didier Raoult despertou polêmica. O médico já colocou em dúvida as mudanças climáticas no planeta, se mostrando cético quanto aos modelos matemático­s que fazem as previsões, em artigos na revista francesa Le Point entre 2013 e 2014.

Em um dos textos, ele afirma que a Terra parou de aquecer em 1998, portanto “o aqueciment­o global é incerto e a responsabi­lidade do homem questionáv­el”. Em outro, ele indaga: “O clima, ciência ou religião?”. Na resposta, diz entender que jornalista­s e políticos possam aderir a teoria, mas cientistas, não.

“Sobre a toxicidade, todo mundo está ficando louco. Isso se trata de mais um fantasma, que eu não sei de onde vem. A hidroxiclo­roquina já foi prescrita para milhões de pessoas que tomam isso durante 30 anos. Isso é um veneno? Justamente no momento que a gente precisa dele, descobrimo­s que é um veneno?

 ?? Gerald Julian/AFP ?? O médico Didier Raoult
Gerald Julian/AFP O médico Didier Raoult

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil