Folha de S.Paulo

O som no vermelho

Produtores, casas de show e associaçõe­s já sentem o que pode ser a pior crise da história no mercado de música ao vivo, enquanto os trabalhado­res informais do setor já recebem doações de cestas básicas

- Lucas Brêda

são paulo Um dos primeiros setores da economia a parar, por causa do avanço do novo

coronavíru­s no Brasil, foi o de shows e eventos musicais. “Antes mesmo de chegar aqui, já estávamos sentindo o impacto disso”, diz Rafael Farah, sócio da produtora e gravadora independen­te Balaclava, em São Paulo. “Tínhamos negociaçõe­s travadas com artistas que estavam vivendo isso em outras partes do mundo.”

Da mesma forma que as demais produtoras, a Balaclava cancelou eventos até junho, entre eles shows esgotados de artistas internacio­nais, como a banda britânica Kero Kero Bonito. A maioria deles, já paga.

O cenário, na visão do setor, é a maior crise da história do mercado de música ao vivo. Lá fora, festivais imensos como o Coachella e o Glastonbur­y foram adiados. No Brasil, o gigante T4F teve de adiar seu Lollapaloo­za para dezembro, e casas antes com agenda cheia e produtores independen­tes também já foram afetados.

“É como quando acaba um espetáculo e você fecha as cortinas”, diz Pedro Augusto Guimarães, presidente da Associação dos Promotores de Eventos do Setor de Entretenim­ento e Afins do Estado do Rio de Janeiro, a Apresenta Rio, que tem 170 empresas associadas. “Parou toda a atividade, fechamos as portas. Uma interrupçã­o abrupta como essa jamais aconteceu. Não se tem referência na história do país. No mundo, só na guerra.”

Sua associação, que atua não só na música, mas em eventos de entretenim­ento em geral, fez um manifesto com medidas que podem ajudar o setor a se reerguer. Essa indústria, diz Guimarães, é uma das mais importante­s para a economia do Brasil, representa­ndo 13% do PIB e movimentan­do cerca de R$ 936 bilhões na economia anualmente, além de gerar cerca de 25 milhões de empregos diretos e indiretos.

Guimarães diz levar em conta não só shows, mas eventos de lazer, congressos, turismo, esporte e até gastronomi­a. “Esse mercado inclui carregador­es de grade, a turma da limpeza, segurança, produtores culturais, designers, arquitetos, gente das mais variadas profissões que atua de forma temporária em eventos.”

Para se ter ideia, ele diz, só uma edição do Rock in Rio movimenta 30 mil empregos diretos, e o festival está intimament­e ligado ao turismo, já que mais da metade dos ingressos são vendidos para fora do Rio.

Entre os grandes, os zeros se contam no prejuízo, mas a base da cadeia já sente necessidad­es primárias. A Balaclava, com operações menores, tem só cinco colaborado­res fixos e em geral movimenta trabalhado­res terceiriza­dos.

“Roadies, técnicos de som e de luz, diretores de palco, carregador­es, empresas que alugam equipament­o. É muita gente que não tem fonte de renda alternativ­a”, diz Farah. “Já existem movimentos inclusive para ajudar o pessoal a ter o que comer, porque o sustento foi todo cortado. Como é um mercado muito informal, não tem nada para segurar.”

Ele lembra campanhas como a Ajude a Graxa, que reúne doações de cestas básicas para quem trabalha nas equipes técnicas de shows. Iniciativa­s do tipo já existem em São Paulo e Belo Horizonte.

Segundo a Balaclava, que também comanda o Breve —casa para 180 pessoas—, são os shows e festivais que seguram a conta. Na prática, um evento acaba viabilizan­do o outro. “Nossa arrecadaçã­o com streaming não chega a 8% do total anual.”

O Espaço das Américas e o Villa Country, duas das casas de grande porte em São Paulo, devem deixar sem emprego cerca de 600 a 700 pessoas nos próximos meses. É o que diz Marco Tobal Júnior, sócio do grupo que comanda as casas .

Ele já conta 60 shows entre cancelados e adiados até agora. “Sem dúvidas é a maior crise de todos os tempos”, diz. “É uma interrupçã­o total, mas os custos de manutenção das estruturas e dos funcionári­os permanecem. A conta não fecha.”

Outra classe diretament­e afetada é a dos compositor­es. O Escritório Central de Arrecadaçã­o e Distribuiç­ão, o Ecad, lidera conversas com a Secretaria Especial da Cultura, comandada por Regina Duarte, para amenizar a crise.

A empresa calcula que, entre março e maio de 2019, ocorreram uma média de 6.600 shows e eventos no país, gerando arrecadaçã­o média de cerca de R$ 11 milhões mensais em direitos autorais. Sem os shows, esse dinheiro deixa de chegar aos compositor­es.

Entre os pedidos da classe estão a regulariza­ção dos débitos relativos aos direitos autorais, em especial das rádios e das TVs. Já a abertura de linhas de crédito especiais é exigência unânime das empresas do setor e integra uma iniciativa tomada por Sérgio Sá Leitão, que comanda a Secretaria de Cultura e Economia Criativa do estado de São Paulo.

Na visão dele, serão necessário­s nove meses —três meses de impacto direto e outros seis de recuperaçã­o— para que a situação se estabilize.

“Estamos enfatizand­o as medidas de crédito, num primeiro momento, porqueéo que está mais ao nosso alcance. Num segundo, uma injeção de recursos que vai permitir que muitas empresas respirem por aparelhos e depois possam se recuperar”, ele diz.

O governo de São Paulo acaba de ampliaras linhas de crédito para acultura. A gestão de João Do ria já havia anunciadoR $500 milhões deverbasu bsidi ad apara empresas doestado e, agora, pequenos negócios poderão recorrer alinhas especiais de microcrédi­to, que totalizam R$ 25 milhões.

Pedro Guimarães, da Apresenta Rio, diz que o crédito ajuda a salvar empregos, mas lembra que o planejamen­to deve ter a retomada como alvo.

“Não podemos esperar. Se for parar para pensar, muita gente já vai ter quebrado”, diz. “Também estou falando do turismo, agências de viagem e hotéis, fora restaurant­es, bares e toda a cadeia produtiva que se alimenta dos eventos.”

Adiamento e parcelamen­to tanto de ingressos que serão reembolsad­os quanto de impostos também são demandas.

No caso dos impostos, diz Sá Leitão, a questão é mais complexa. “Acho inevitável que [o diferiment­o de impostos] aconteça, mas precisamos trabalhar com responsabi­lidade, porque a perda de receita pode prejudicar o enfrentame­nto da crise, no que diz respeito às medidas de saúde.”

“O show tem que continuar”, refrão de um samba do Fundo de Quintal, tem sido o mantra de Guimarães na crise. “O projeto econômico do Paulo Guedes passa muito ao largo do que vai impactar a nossa indústria. Queremos organizar a retomada, trabalhamo­s no pós-crise, mas precisamos que o governo compre essa ideia. Queremos voltar mais fortes.”

Em meio às incertezas, os produtores menores batem cabeça para planejar. E, assim como os trabalhado­res terceiriza­dos, têm expectativ­as baixas de receber ajuda do governo.

“O que fizemos de plano de contingênc­ia que mudou em duas horas não foi pouco”, diz Farah. “Linha de crédito ajuda, parcelamen­to de imposto também. Dá sobrevida às empresas. Mas, para o pessoal que trabalha informalme­nte, não ajuda tanto. É importante para que a cadeia não quebre, mas é preciso muito mais, principalm­ente investimen­tos futuros. Só que a gente não se ilude. A cultura já não era prioridade neste governo. Neste momento, acho que vai ser menos ainda.”

 ?? Drazen Zigic ?? Público se diverte durante uma apresentaç­ão de música ao vivo, um dos primeiros tipos de eventos cancelados pela pandemia do novo coronavíru­s
Drazen Zigic Público se diverte durante uma apresentaç­ão de música ao vivo, um dos primeiros tipos de eventos cancelados pela pandemia do novo coronavíru­s

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