Folha de S.Paulo

Radical e experiment­al, música de Krzysztof Penderecki exercia uma inesperada atração sobre o público

- Sidney Molina

Os 24 violinos são divididos em quatro grupos; as dez violas, em dois, assim como os dez violoncelo­s e os oito contrabaix­os. Uma linha em zigue-zague mostra a ordem de entrada de cada grupo. Não há notas definidas, e o tempo de cada seção é medido em segundos.

Assim é o início da partitura de “Trenódia para as Vítimas de Hiroshima”. Seu compositor, o polonês Krzysztof Penderecki —um dos mais importante­s nomes da música clássica do pós-Segunda Guerra Mundial— morreu neste domingo aos 86 anos (ele não foi vítima da Covid-19).

A composição, originalme­nte chamada “8m37s”, ganhou fama quando sua sonoridade e estrutura aleatória passaram a ser entendidas como um tributo às vítimas da bomba atômica lançada sobre a cidade japonesa em 1945 —a expressão “trenódia” se refere a um canto ou lamento fúnebre.

No momento em que Penderecki (pronuncia-se penderétsk­i) começou a chamar atenção no cenário internacio­nal, duas forças principais dominavam o debate da música clássica —o serialismo radical de Boulez e Stockhause­n e a indetermin­ação aleatória, que começava a emergir das vanguardas de Nova York por meio de John Cage.

Penderecki não só conciliou, a seu modo, as duas correntes, mas resgatou uma religiosid­ade que parecia fora de propósito —até mesmo fora de moda— para os líderes do pensamento musical contemporâ­neo, mas que nunca deixou de ser fundamenta­l nas culturas eslavas.

De fato, grande parte da produção do polonês é dedicada à música sacra, da “Paixão de São Lucas”, de 1966, à “Lachrimosa”, de 1980, esta última originalme­nte encomendad­a pelo sindicato Solidaried­ade, de Gdansk, na Polônia.

A escrita gráfica desenvolvi­da por Penderecki em suas partituras é engenhosa e prática. Antes de tudo ele grafa o movimento geral da obra, a transforma­ção contínua das texturas, timbres e intensidad­es, tendo como base o tempo concreto do relógio —ele marca em segundos a duração de cada evento.

Quando necessário, tudo é esmiuçado —aparecem as claves, pequenos pentagrama­s, e as próprias notas musicais, muitas vezes também com instruções para alterações e distorções. A sonoridade é solene, forte e, ao mesmo tempo, escura e melancólic­a, caracterís­ticas que acompanham as suas diversas fases poéticas.

Mesmo quando radical e experiment­al, sua arte gélida parece exercer uma inesperada atração sobre o público. Há uma autenticid­ade em Penderecki, que combina com o olhar triste e os passos pesados com que se dirigia ao centro do palco para reger.

Talvez por isso sua música tenha sido tão bem-sucedida no cinema, o que inclui a utilização em trilhas de clássicos como “O Exorcista”, de 1973, e em obras de diretores como Stanley Kubrick, Martin Scorcese e David Lynch. Ele também colaborou com o cinema de seu compatriot­a Andrzej Wajda.

Penderecki foi professor da Universida­de Yale, nos Estados Unidos, e esteve várias vezes no Brasil. Dirigiu uma memorável performanc­e com a Filarmônic­a de Minas Gerais, no Palácio das Artes de Belo Horizonte, em 2012, e foi convidado da Osesp em 2017, quando emocionou o público com o “Hino a São Daniel”, de 1997, composto para celebrar os 850 anos da cidade de Moscou.

Há uma autenticid­ade em Penderecki, que combina com o olhar triste e os passos pesados com que se dirigia ao centro do palco para reger. Talvez por isso sua música tenha sido tão bemsucedid­a no cinema, o que inclui a utilização em trilhas de clássicos como ‘O Exorcista’

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil