Folha de S.Paulo

Em defesa do Tio do Pavê

Ele pode ser inconvenie­nte, mas não é ignorante

- Claudia Tajes Escritora e roteirista, tem 11 livros publicados. É autora de ‘Macha’

Gostaria de dedicar algumas linhas a um personagem brasileiro que vem sendo vilipendia­do e aviltado quase que diariament­e nas redes sociais: o Tio do Pavê —o inoportuno —porém nunca mal intenciona­do— Tio do Pavê, que até garantiu algumas risadas na primeira vez em que perguntou “é pavê ou pacomê?”. O equívoco dele foi continuar fazendo a mesma gracinha em todas as reuniões dos Silva, dos Almeida, dos Barbosa, dos Araújo, dos Tajes. Nada que justifique a injustiça que vem sofrendo.

Toda família tinha, e tem, o seu Tio do Pavê. Magrelo, rechonchud­o, careca, alto, baixinho, não interessa. O Tio do Pavê é um estado de espírito, o incontrolá­vel impulso de ser sem graça. Ele é um produto de época que sobreviveu a todas as épocas, porque a piada do pavê, assim como a cor dos olhos e o time de futebol, passa de geração a geração. O primo de hoje é o Tio do Pavê de amanhã. Assim como a comportada, o rebelde, o estudioso, a namoradeir­a, esse é um papel que nunca fica vago.

O Tio do Pavê vivia confortáve­l no seio das famílias e no inconscien­te coletivo. Então veio o Bolsonaro presidente, e a imagem dele nunca mais foi a mesma.

A cada chiste de mau gosto do Bolsonaro, a comparação com o Tio do Pavê. Cada vez que que o Bolsonaro surgia de camiseta do Brasil falsificad­a, a sentença —Tio do Pavê. Cada sorrisinho malicioso do Bolsonaro, pronto —Tio do Pavê. O Tio do Pavê não merecia essa sorte.

O Tio do Pavê pode, e deve, ser acusado de inconvenie­nte, mas não de ignorante. Jamais diria que o vidro das casas lotéricas impede a passagem dos vírus porque é informado. Colecionav­a Seleções e hoje lê jornal de cabo a rabo, incluindo os editais e avisos à praça.

Se quem sabe mais o mandasse ficar em casa, o Tio do Pavê ficaria. Ele é quase sempre impróprio, mas não é burro. E ainda passaria os dias no WhatsApp, não disparando fake news, mas controland­o a quarentena do resto da família. Os filhos dele que, diferente de uns e outros, foram bem criados, por certo estariam recolhidos.

Nesse momento, enquanto o Bolsonaro ofende uma jornalista ou o doutor Drauzio, o Tio do Pavê está em casa, quem sabe com uma cervejinha na mão, contribuin­do para a curva do coronavíru­s achatar. Antes fosse ele o presidente.

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Cynthia Bonacossa

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