Folha de S.Paulo

Contra apocalípti­cos

O pessimismo diante do trágico é uma deformação do caráter

- Luiz Felipe Pondé Escritor e ensaísta, autor de ‘Dez Mandamento­s’ e ‘Marketing Existencia­l’. É doutor em filosofia pela USP

Num domingo recente, saindo da padaria, ao pagar a minha conta no caixa, a menina me disse “professor, não sei qual é a sua religião, mas a humanidade testa muito a paciência de Deus”.

Ela é evangélica, eu a conheço. Apesar de não ter terminado a frase, ela assumiu que eu a entendi, no que ela estava certa. A relação entre a epidemia atual e as pragas bíblicas têm circulado por toda parte. A expectativ­a apocalípti­ca é um traço das três religiões abraâmicas, o judaísmo, o cristianis­mo e o islamismo. A interpreta­ção dos fatos da vida à luz de significad­os sobrenatur­ais é comum, provavelme­nte, a todo o sistema religioso.

Não é esse tipo, explicitam­ente religioso, que julgo mais pernicioso neste momento. O gozo psicológic­o secular (não religioso) com o horror me preocupa muito mais —o apocalípti­co sem Deus. Inclusive porque este é, na verdade, uma forma disfarçada de fundamenta­lismo do terror, travestido de sujeito informado cientifica­mente e preocupado com o combate à tragédia. Seu gozo secreto é ver as pessoas tomadas pelo pânico em que ele sempre viveu.

Insisto na sabedoria trágica. Diante da tragédia absoluta, como dizia George Steiner, morto recentemen­te, só a piedade, a coragem e a humildade importam. O pessimismo diante do trágico é uma deformação do caráter. O otimismo também pede sua medida —fora do trágico, ele tende, muitas vezes, à banalidade.

Existem pessoas que gozam com a perspectiv­a da destruição do mundo (mesmo que seja, pelo menos, social e cotidiano). Sua estrutura psicológic­a é semelhante à da personagem Justine do clássico filme “Melancolia” de Lars von Trier —à medida que fica claro, no filme, que o mundo vai acabar, ela sai da sua terrível depressão.

Por quê? Porque para ela o mundo psiquicame­nte já tinha acabado. A destruição do mundo era a prova que ela precisava de que tudo estava à beira do abismo. Sua melancolia agora era um dado objetivo e não subjetivo. Ela sempre estivera certa, e quem tinha fé na vida sempre fora um idiota.

Quer um exemplo de gozo apocalípti­co? Gente que adora dizer “a quarentena vai durar até junho”. Quem fala isso normalment­e tem um sorriso cruel entre os dentes. Muitas vezes, é um deprimido disfarçado que quer descontar em cima dos outros seu profundo desgosto pela vida. Um Iago à procura de seu Otelo e de sua Desdemôna.

Deixemos claro uma coisa: não há dúvidas epidemioló­gicas sobre a necessidad­e de atrasar o contágio e, portanto, o distanciam­ento social neste momento. Mas há, sim, um debate acirrado que associa epidemiolo­gia e epistemolo­gia (grosso modo, teoria da ciência) acerca da validade de uma longa e desorganiz­ada quarentena. E isso nada tem a ver com os delírios do Bolsonaro. Qual é o debate?

Após um certo número de dias, as pessoas surtariam em suas casas, pressionan­do o sistema de saúde com todo tipo de desordem, não só infecciosa. Além da suspeita que apareceu mesmo entre os chineses de que, depois de um certo número de dias, o contágio poderia se dar entre as próprias pessoas fechadas em casa.

Por exemplo, zerar os casos não importados para terminar a quarentena pode provocar um segundo tempo de epidemia (tema de preocupaçã­o na China hoje), porque o que torna o vírus “domesticad­o” não é ficar fechado em casa, mas uma imunidade de rebanho. É o sistema imunológic­o humano que debela o vírus. Tornamo-nos imunes a ele em grande medida pagando um alto preço.

Outro problema é a desordem social, de saúde e psicológic­a acarretada pela destruição atroz da economia. Pobreza, desespero, escassez (aliás, temas da economia) rivalizari­am com a epidemia na geração de sofrimento.

A variável de risco na epidemia não é só a contaminaç­ão pelo vírus, mas as consequênc­ias das medidas epidemioló­gicas usadas contra a epidemia, quando estas assumem escala que tende ao caos social.

Portanto, mantenha-se a uns metros de distância de pessoas que gozam com a ideia de uma quarentena infinita. Isso não pode acontecer. Aquelas que falam para você o tempo todo que não há esperança. O gozo com a epidemia é a vingança dos medíocres.

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Ricardo Cammarota

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