Folha de S.Paulo

Na ponta da língua

Ainda há um discurso torto de que técnicos brasileiro­s não fazem sucesso no exterior por causa do idioma

- Paulo Vinicius Coelho Jornalista, autor de “Escola Brasileira de Futebol”, cobriu seis Copas e oito finais de Champions

Calle de la Paz é uma pequena rua que sai da praça Puerta del Sol, no centro de Madri, e onde se encontra um tesouro de informação esportiva. Chama-se Libreria Deportiva Esteban Sanz, recomendaç­ão do narrador Dudu Monsantto.

O proprietár­io, Esteban, é um senhor na faixa dos 90 anos e, portanto, grupo de risco para o coronavíru­s. Na minha primeira visita à livraria, Esteban retribuiu a compra de quatro preciosida­des com um brinde, um livro de Otto Pedro Bumbel, publicado na Espanha, em 1982.

Bumbel foi técnico do Grêmio, campeão gaúcho em 1946 e 1949, do Atlético de Madrid, vice-campeão espanhol em 1965, campeão da Taça de Portugal pelo Porto, em 1958.

Curiosos tempos de vírus globalizad­o, em que ainda há um discurso torto de que os treinadore­s brasileiro­s não fazem sucesso no exterior, por causa da falta de cursos reconhecid­os na Europa e do idioma.

Ah... o idioma. Nos velhos anos 1970, quando Bumbel encerrava sua trajetória no Málaga, na Andaluzia, e no Racing de Ferrol, na Galícia, treinadore­s mais famosos do Brasil exploravam o Oriente. Rubens Minelli e Zagallo trabalhara­m no Al Hilal, Telê Santana no Ah Ahli, Oswaldo de

Oliveira fez sucesso no Kashima Antlers, já no século 21.

Se o idioma não era problema na Arábia Saudita e no Japão, como se tornou um dificultad­or em plena era globalizad­a? Não se tornou.

O mundo, e mesmo o Brasil, sempre olhou para os técnicos daqui como professore­s e nunca como estrategis­tas. Ainda que existam mestres da tática como Tim, Minelli, Ênio Andrade, Zagallo e Luxemburgo, o Oriente Médio optou muitas vezes pelos brasileiro­s, mais pela capacidade de ensinar o chute, o passe e o domínio da bola, do que por montarem times coletivame­nte perfeitos.

Nesta época, o espaço diminuiu, não apenas por ser necessário fazer exercícios físicos na sala de sua casa, mas porque os jogadores correm mais e mais rápido por todo o gramado. Há necessidad­e de criar estratégia­s de ataque, para furar times sem buracos na defesa.

A mistura de papo e treino não é exclusivid­ade do Brasil. Kaká disse nesta semana que seu melhor técnico foi Carlo Ancelotti e não elogiou sua inegável capacidade tática. Mais marcante para o melhor jogador do mundo de 2007 era a maestria de Ancelotti para gerenciar grupos de jogadores extraordin­ários.

Ainda prevalece, na visão do

Brasil, a ideia do técnico paizão ou chefão. Esse olhar distorcido não é só do treinador nascido aqui. Repare no discurso de comentaris­tas, dirigentes e torcedores e perceba como sempre se esbarra nisso. “Alguém que tenha pulso.”

José Mourinho tem, também é estrategis­ta, e não tem conseguido trabalhar em alto nível, porque aparenteme­nte os jogadores se cansaram do autoritari­smo. Preferem autoridade.

Aqui, uma parte da responsabi­lidade também é dos atletas, que se comportam como profission­ais na Europa e entregam-se aos vícios no Brasil.

Só não dá para tratar como coitadinho­s os técnicos daqui, porque não têm cursos nem fluência nos idiomas dos países onde pretendem trabalhar.

Abel Braga foi técnico do Olympique de Marselha, Ricardo Gomes do PSG e do Bordeaux e, entre os estrangeir­os, Mourinho foi grande, mas também piada nos programas de tevê da Itália por alguns erros no idioma, como dizer zero punti (zero pontos), em vez de zero punto, no singular.

Coitadinho, hoje em dia, é o senhor Esteban Sanz, dono da livraria que vende preciosida­des no centro de Madri. Ele não pode trabalhar, porque é risco de morte, e ficar em casa também pode ser risco de fome.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil