País mostra como candidato a ditador pode manipular crise
SÃO PAULO A União Europeia, grupo para o qual o compromisso com a democracia é um dos esteios, acaba de ganhar sua primeira ditadura na prática: a Hungria.
Enquanto durarem os poderes extraordinários concedidos ao primeiro-ministro Viktor Orbán, um aliado ideológico de primeira hora do governo Jair Bolsonaro, o país terá um homem-forte a ditar as regras por decreto. Isso é inédito na história do bloco de 27 membros.
O motivo, a crise causada pela pandemia do coronavírus. O caso húngaro é emblemático sobre como um regime com fortes traços autoritários pode fazer uso de uma emergência para consolidar a escalada rumo à ditadura.
“Todos têm de deixar sua zona de conforto”, disse Orbán, prometendo devolver os poderes assim que a crise passar.
A Assembleia Nacional, na qual o governo tem 133 das 199 cadeiras, assentiu após uma resistência inicial da oposição.
Noves fora o fato de líderes com poderes inicialmente extraordinários não terem o costume de abrir mão deles —e essa é uma tradição no Ocidente desde que Júlio César atravessou o rio Rubicão em 49 a.C. para tomar Roma—, Orbán está longe de deixar sua zona de conforto.
Desde que voltou ao poder em 2010, o premiê liberal que governara de 1998 a 2002 transmutou-se num modelo do autocrata moderno do Leste Europeu. Manipulou o trauma nacional do domínio comunista do pós-guerra de forma a apontar para inimigos externos e tolher liberdades democráticas.
Em 2015, o premiê chocou a Europa com sua política radical contra refugiados da guerra civil síria, a quem chamou de “invasores muçulmanos”. O país não adotou cotas de reassentamento de imigrantes.
A proposta da União Europeia só não foi aceita pela também crescentemente autoritária vizinha Polônia.
Três anos depois, Orbán consolidou seu domínio sobre o Judiciário ao criar um sistema paralelo para julgar casos ligados à administração pública. Seu maior aliado chama-se Vladimir Putin, o presidente russo que acaba de abrir a porta para tentar ficar no poder até 2036.
Agora, o coronavírus proporcionou ao autoritário premiê a oportunidade perfeita para ampliar sua obra. A bola então passa à União Europeia.
O bloco terá de modular a empreitada por meio de seus mecanismos de controle.
A Hungria é um país medianamente integrado ao bloco, e não faz parte da zona do euro. É membro da Otan, a aliança militar ocidental.
A reação inicial europeia foi tímida, talvez esperando para entender o que irá acontecer. Mas também é fato que o continente, ora no centro da pandemia com as cenas de horror na Itália e na Espanha, parece apavorado demais para se preocupar com o líder húngaro agora.
Há também limites práticos que poderão se impor. Um agravamento da crise sanitária forçosamente obrigará maior cooperação internacional, e a Hungria precisará, neste caso, do dinheiro de Bruxelas. Isso pode ser visto como um seguro a médio prazo.
Enquanto isso, os riscos são vários. Orbán vinha culpando estudantes iranianos pela disseminação do patógeno no território húngaro.
Assim, é possível especular que grupos deverão ser mais atingidos pelas medidas de exceção à disposição do premiê.
É inescapável imaginar que a aventura de Orbán seja vista com bons olhos no Palácio do Planalto.
O húngaro foi um dos primeiros líderes mundiais a comparecer à posse do brasileiro e, em abril de 2019, recebeu o filho presidencial Eduardo em Budapeste para discutir o alinhamento de movimentos de direita no mundo.
Mas, diferentemente de Bolsonaro, o premiê não se comporta como um negacionista da gravidade da Covid-19, uma “gripezinha” para o brasileiro.
O país está em estado de emergência desde 11 de março e de quarentena desde a semana passada, com limitações para a abertura do comércio.
Numa coisa contudo, Orbán e Bolsonaro combinam: acham que o Sars-CoV-2 só é um perigo para pessoas com mais de 60 anos, o que é um erro científico crasso.
Inicialmente, o húngaro determinou o fechamento de universidades, mas proibiu que alunos do ensino médio para baixo fossem dispensados de aulas.
Se o número de mortos até aqui na Hungria, 15, parece baixo, é bom lembrar que ele é mais que o dobro da taxa brasileira: 4,5 vítimas por 100 mil habitantes.
A democracia húngara é uma vistosa vítima da pandemia. Na China, onde o surto inicial da doença foi registrado na virada do ano, o regime é uma ditadura comunista.
Ativistas anti-Pequim dizem que o monumental esforço de monitoramento da população com tecnologia de reconhecimento facial e telefonia móvel, que parece ter ajudado a conter a doença pelo controle de movimento das pessoas, elevou o grau de poder do Estado sobre os cidadãos.
Ali, como agora na Hungria, quem for pego disseminando fake news sobre o vírus pode ser preso. A linha entre perseguição política e repressão legítima vai ficar bastante tênue. Atravessado o Rubicão, as tentações são muitas.
Líder com amplo poder não costuma abrir mão dele, essa é uma tradição desde que Júlio César cruzou o Rubicão