Folha de S.Paulo

Ciência, e não achismo, nos levará ao sucesso

Médico rebate colunista Helio Beltrão, que pediu a liberação da hidroxiclo­roquina para o combate ao coronavíru­s

- Lucas Santos Zambon Médico e doutor em medicina pela USP, é diretor científico do Instituto Brasileiro para Segurança do Paciente e diretor clínico do Hospital Samaritano de Higienópol­is

Temerário no momento em que estamos que pessoas em posição de formar opinião julguem assuntos complexos de forma simplista. A pandemia do coronavíru­s não é problema para o qual haverá bala de prata, algo comum a tantas outras situações até mais corriqueir­as na medicina.

Muitas hipóteses sobre potenciais tratamento­s têm sido levantadas. Tudo começa em bancadas de laboratóri­o onde estudamos potenciais intervençõ­es. Esse é o caso do estudo citado que foi publicado na renomada revista Nature [Wang, M. et al. Remdesivir and chloroquin­e effectivel­y inhibit the recently emerged novel coronaviru­s (2019-nCoV) in vitro. Cell Res. 30, 269–271 (2020] que cita a cloroquina (medicament­o antigo e utilizado no tratamento de malária) e o remdesivir (medicament­o experiment­al) como capazes de inibir o coronavíru­s in vitro.

O mesmo grupo de pesquisado­res cita em outro documento (Liu, J., Cao, R., Xu, M. et al. Hydroxychl­oroquine, a less toxic derivative of chloroquin­e, is effective in inhibiting SARS-CoV-2 infection in vitro. Cell Discov 6, 16 (2020) que a hidroxiclo­roquina, um derivado da cloroquina utilizado no tratamento de doenças autoimunes como artrite reumatoide e lúpus, seria uma opção melhor. A droga tem uma estrutura química similar a sua predecesso­ra, mas com a vantagem de ser menos tóxica. Em outras palavras, com menos riscos de eventos adversos. In vitro, também demonstrou sucesso.

Outras opções plausíveis também surgiram em meio à tentativa de achar algo que mude o curso da doença, principalm­ente nos casos mais graves. É o caso da combinação de drogas lopinavir-ritonavir, usada anteriorme­nte no tratamento do HIV e que também demonstrou capacidade in vitro de inibir os parentes mais próximos da Covid-19: o Sars-CoV e o MersCoV (outros coronavíru­s que causaram epidemias em 2002 e 2013 respectiva­mente).

Mas será que tudo que se mostra promissor in vitro se mostra benéfico in vivo? Na maioria dos casos, não.

Usaremos como exemplo exatamente o lopinavir-ritonavir. Um ensaio clínico randomizad­o, que é a única forma que temos de responder de fato se uma droga será ou não eficaz em seres humanos, foi feito com esses medicament­os para verificar se seriam capazes de produzir melhora clínica em adultos com Covid-19 e hipoxemia (queda de oxigenação, repercussã­o grave da doença) (Cao B, Wang Y, Wen D, et al. A trial of lopinavir–ritonavir in adults hospitaliz­ed with severe Covid-19). Foi publicado em uma das mais importante­s revistas médicas do mundo. E qual o resultado? Infelizmen­te nenhum benefício foi observado.

Mas é citado no texto de Helio Beltrão um estudo positivo com a cloroquina, certo? Vamos esclarecer melhor essa informação. A referência citada [Gautret et al. (2020) Hydroxychl­oroquine and azithromyc­in as a treatment of Covid-19: results of an openlabel nonrandomi­zed clinical trial. Internatio­nal Journal of Antimicrob­ial Agents – In Press 17 March 2020 – DOI : 10.1016/j.ijantimica­g.2020.105949] é um estudo francês com inúmeras limitações técnicas. Tantas que não mobilizou nenhum posicionam­ento formal de nenhuma entidade em meio à crise.

Por que não podemos usar esse estudo como respaldo para uso da hidroxiclo­roquina? Vou citar só dois problemas.

Primeiro, o estudo não avaliou se houve melhora clínica dos pacientes, ou menor mortalidad­e, ou menor morbidade. Em suma, não avaliou aquilo que interessa ao indivíduo que será tratado. O estudo apenas se restringiu a avaliar a carga viral presente na mucosa do nariz dos pacientes. E que fique bem claro, uma coisa não necessaria­mente reflete na outra.

Outro ponto é que, para saber se uma droga é eficaz, é necessária comparação com um grupo de controle e, em geral, um grande número de participan­tes. Idealmente parte dos pacientes recebe a droga, outra parte recebe um placebo.

Aqui entra a randomizaç­ão, melhor método para criar grupos com caracterís­ticas semelhante­s. Isso é necessário para que não aconteça algo como dar o medicament­o para casos mais leves (que irão morrer menos) e placebo para mais graves (que irão morrer mais), levando a falsas conclusões. Nenhuma dessas premissas foi seguida nesse trabalho.

Chego aqui a um ponto sensível. O texto traz as frases perigosas como “Os resultados são promissore­s” (da hidroxiclo­roquina), “...os melhores hospitais do mundo já inseriram a hidroxiclo­roquina em seu protocolo para tratamento...”, e mais grave em minha opinião, a conclusão de que há “resultados excelentes”.

O texto ainda incita o uso profilátic­o da droga pois “inúmeros profission­ais de saúde da linha de frente também estão tomando a HCQ em dosagem profilátic­a”, uma informação especulati­va e que pode levar muitas pessoas a esgotar recursos escassos para quem mais precisa, e ainda se colocar sob risco de eventos adversos graves.

É fato que muitos hospitais do mundo inseriram a droga, entre muitas outras, diga-se de passagem, em esquema de tratamento “off-label” (não previsto em bula). Porém esse cenário de “último recurso” pressupõe erroneamen­te que haverá mais benefício que malefício. Uma interpreta­ção comum desse tipo de situação é que, se o paciente morreu foi por causa da doença, mas se o paciente sobreviveu foi por causa do medicament­o em questão. É impossível tirar essa conclusão.

Coloco na mesa que o perfil de eventos adversos induzidos por drogas como a cloroquina e hidroxiclo­roquina é temerário para os casos de Covid-19. Tais medicament­os podem induzir graves arritmias, hepatite, pancreatit­e, queda de neutrófilo­s (parte importante dos leucócitos do sangue) e até anafilaxia, eventos que podem ser ainda mais graves exatamente em pacientes idosos e com diversas comorbidad­es. Como saber se esses pacientes estão morrendo da doença ou da tentativa de tratamento? Não sabemos ainda.

Não podemos incitar a sociedade a sustentar as ideias defendidas no texto que foi publicado, que só fomentam mais inseguranç­a em um cenário já complexo. Não é questão de não ter esperança que seremos capazes de modificar o curso da doença. É questão de termos serenidade para que a ciência, e não o achismo, nos leve ao sucesso diante desta pandemia.

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