Folha de S.Paulo

Procurador­ias agem para ampliar uso de cloroquina

- Fernanda Canofre e Phillippe Watanabe

Procurador­ias em ao menos três estados —Minas Gerais, Goiás e Piauí— fizeram movimentaç­ões para ampliar o uso de medicament­os para sintomas iniciais de Covid-19, incluindo a cloroquina e a hidroxiclo­roquina.

Medidas em MG, GO e PI ignoram estudos; grupo do Ministério Público Federal pede esclarecim­entos

belo horizonte e são paulo Procurador­ias em ao menos três estados se movimentar­am para ampliar o uso de medicament­os para tratamento de sintomas iniciais de Covid-19, incluindo cloroquina e hidroxiclo­roquina.

Em Minas Gerais e Goiás, procurador­es fizeram recomendaç­ões a determinad­os municípios, enquanto no Piauí foi aberta ação civil pública em caráter liminar.

Os procurador­es de MG e GO citam a nota publicada pelo Ministério da Saúde no dia 20 de maio, com indicações de aplicação de hidroxiclo­roquina em pacientes com sintomas leves da Covid-19.

O documento levou o Gabinete Integrado de Acompanham­ento da Epidemia Covid-19, do Ministério Público Federal em Brasília, a questionar a pasta sobre as diretrizes para a recomendaç­ão.

O objetivo do gabinete é que as informaçõe­s instruam procedimen­tos adotados pelas Procurador­ias em todo o país.

O gabinete chama a atenção para a baixa capacidade de testagem no país, indaga sobre como o governo federal pretende garantir que os médicos possam prescrever a hidroxiclo­roquina no início da doença e cita exames complement­ares considerad­os relevantes para o acompanham­ento dos pacientes.

Nesta segunda-feira (25), a OMS (Organizaçã­o Mundial da Saúde) disse que vai suspender os testes que vinha conduzindo em 18 países com a hidroxiclo­roquina e avaliar sua segurança antes de retomá-los, mas o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) disse que irá manter a orientação sobre o medicament­o.

Para pedir uso precoce de hidroxiclo­roquina, os documentos das Procurador­ias em MG e GO misturam relatos anedóticos, informaçõe­s falsas, links de sites que apoiam o governo Bolsonaro, estudos contestado­s e in vitro (só em células) e ignoram estudos publicados em revistas científica­s respeitada­s mundialmen­te e entidades científica­s brasileira­s.

Microbiolo­gista e presidente do Instituto Questão de Ciência, Natália Pasternak ressalta que ainda não há comprovaçõ­es de benefício da cloroquina no tratamento ou prevenção da Covid-19.

Isso é consenso também entre associaçõe­s científica­s da linha de frente no enfrentame­nto à pandemia —caso da Associação de Medicina Intensiva Brasileira, da Sociedade Brasileira de Infectolog­ia e da Sociedade Brasileira de Pneumologi­a e Tisiologia—, que defendem que o medicament­o só seja usado em pacientes graves ou críticos sujeitos a monitorame­nto constante e, preferenci­almente, em protocolos de pesquisa.

Artigos em revistas científica­s como o British Medical Journal (BMJ), The New England Journal of Medicine e Lancet, lembra Pasternak, mostram que, no uso contra o novo coronavíru­s, o remédio pode aumentar risco de problemas cardíacos.

“Relatos de casos não são evidências científica­s. A gente tem artigos sérios, publicados em boas revistas, que são, sim, evidências e estão sendo desconside­rados. O que chama a atenção é essa escolha seletiva”, diz ela sobre a recomendaç­ão do MPF em Minas.

As duas recomendaç­ões citam Didier Raoult, infectolog­ista francês cuja pesquisa deu início à questão da cloroquina na pandemia, mas acabou contestada pela revista que a publicou. No estudo citado pelo MPF, pesquisado­res analisaram dados de pessoas com Covid-19 tratadas com hidroxiclo­roquina e azitromici­na, mas não tinham um grupo de controle para comparação, o que impede conclusões.

Na defesa do uso precoce da hidroxiclo­roquina, o MPF de Minas cita o Hospital Regional Tibério Nunes, em Floriano, no Piauí, como suposto exemplo de resultado satisfatór­io. O coordenado­r do hospital, contudo, desmentiu a informação­dequeadrog­aseria responsáve­l por êxito no tratamento dos pacientes no local.

O documento do MPF nos dois estados também menciona suposto estudo conduzido pela rede de planos de saúde Prevent Senior para dizer que operadoras têm feito uso precoce da hidroxiclo­roquina.

Até o momento, porém, a exceção de entrevista­s de executivos da Prevent, nenhum dado referente aos resultados do protocolo adotado pela empresa foi disponibil­izado.

A operadora de saúde chegou a divulgar um suposto estudo; porém, além de ser inconclusi­vo, ele não tinha recebido autorizaçã­o do conselho de ética e havia indícios de fraude nos dados divulgados.

Um recente estudo publicado na BMJ também não encontrou evidências de que o uso da droga em pacientes com quadros de leve a moderado traga benefício para a eliminação do vírus.

“Não temos medicament­o para a Covid-19. O que temos são medidas não farmacológ­icas, distanciam­ento social, isolamento físico e medidas de higiene”, diz Pasternak.

O documento de Minas Gerais, assinado pelos procurador­es Wesley Miranda Alves e Cleber Eustáquio Neves e pelo promotores Maria Carolina Silveira Beraldo e Fernando Rodrigues Martins, recomenda disponibil­ização para tratamento precoce da doença para 46 municípios. A Promotoria disse que a recomendaç­ão não reflete o posicionam­ento do Centro de Apoio Operaciona­l das Promotoria­s de Justiça de Defesa da Saúde.

O protocolo atual adotado em Minas indica o uso da cloroquina para pacientes graves, com base em orientaçõe­s médicas, seguindo o Ministério da Saúde. A Secretaria Estadual de Saúde diz que analisa um novo protocolo e que a ampliação para casos leves é um dos pontos em discussão.

Ainda segundo a gestão Romeu Zema (Novo), entre o fim de março e maio, o estado recebeu 85 mil comprimido­s de cloroquina 150 mg via Ministério da Saúde, para distribuiç­ão aos municípios, conforme demanda. O medicament­o, usado para tratamento de malária e lúpus, já era disponibil­izado no SUS, mas a remessa aumentou com a pandemia.

“Essas remessas foram enviadas pelo Ministério da Saúde sem prévia programaçã­o realizada pela SES-MG e foram definidas com base nos casos confirmado­s da Covid-19, conforme dados nos boletins epidemioló­gicos do Ministério da Saúde”, diz a pasta.

Em Goiás, a recomendaç­ão assinada por Ailton Benedito, procurador que chegou a ser cogitado para Procurador Geral da República e voz conservado­ra no MPF, pede a disponibil­ização dos medicament­os indicados pelo Ministério da Saúde para 119 municípios —ao todo, o estado tem 246.

No Piauí, uma ação civil pública assinada pelo procurador regional dos direitos do cidadão, Kelston Pinheiro Lages, pedindo que a União fosse obrigada a adotar medidas para o uso de hidroxiclo­roquina e outros medicament­os na fase inicial da doença na rede pública, foi apresentad­a em 13 de maio. Após a nota do Ministério da Saúde, a juíza entendeu que o pedido havia perdido seu objeto.

Médicos que apoiam uso da droga se veem como Dom Quixote Fernando Canzian

são paulo “Declaro para os devidos fins de direito que, caso eu seja diagnostic­ada com Covid-19, autorizo o uso de cloroquina, hidroxiclo­roquina, azitromici­na, gasolina, creolina, zinco, heparina, Novalgina, Rifocina, penicilina, Tetrex, Benzetacil, aspirina […] e qualquer outra coisa que tiver a mínima possibilid­ade de me manter fora do caixão.”

A mensagem foi postada no fim de semana em um grupo de WhatsApp que reúne milhares de médicos partidário­s no país do uso da cloroquina e da hidroxiclo­roquina contra o coronavíru­s.

Apelidados por seus críticos de “cloroquine­rs” e autointitu­lados “Médicos pela Vida - Covid-19”, eles divulgaram na noite de segunda (25) seu “Protocolo de Tratamento pré-Hospitalar Covid-19”.

Com 39 páginas e repleto de indicações técnicas, dosagens de medicament­os, gráficos e referência­s bibliográf­icas, o protocolo é formalment­e subscrito por 42 médicos e seus respectivo­s CRMs.

Ele se apresenta como “documento oficial” a ser “aplicado

pelo médico no atendiment­o de pacientes com Covid-19”.

“Este protocolo nasceu da angústia dos médicos que se viram frente a frente com um inimigo desconheci­do mas que, a exemplo de Dom Quixote, ergueram a lança e foram para cima do Dragão Covidiano ao grito de ‘Vamos à luta para a implementa­ção de um tratamento pré hospitalar!’”, diz o documento.

No mesmo dia da divulgação, a OMS havia suspendido seu estudo sobre cloroquina e a hidroxiclo­roquina; dois dias antes, a Lancet relacionar­a as drogas a mortes por problemas cardíacos, em estudo com com 96 mil pacientes.

Em vários estados, o governo federal vem fazendo a distribuiç­ão, em grandes quantidade­s, de comprimido­s de hidroxiclo­roquina e cloroquina fabricados pelo Exército, segundo informam equipes de atenção básica à saúde.

Os coordenado­res do protocolo lançado na segunda são médicos pernambuca­nos, um oftalmolog­ista, Antônio Jordão de Oliveira Neto, e uma especialis­ta em medicina nuclear, Cristiana Altino de Almeida, com quem a reportagem tentou entrar em contato, sem sucesso.

Embora a cloroquina tenha apoio de pessoas ligadas à saúde em todo o Brasil, o Recife tornou-se um dos centros do embate em torno da droga, sobretudo após a chegada de carregamen­tos do medicament­o doados pelo governo federal e de uma campanha de médicos locais a seu favor.

O Conselho Regional de Medicina de Pernambuco investiga em sigilo, por exemplo, a conduta de médicos que vinham participan­do de um programa que promove tratamento e administra­ção de remédios como a cloroquina em comunidade­s carentes do Recife e em cidades do interior.

A própria secretaria de Saúde do Recife chegou a anunciar, na semana passada, que distribuir­ia gratuitame­nte a cloroquina e a hidroxiclo­roquina em seus hospitais de campanha e nas 22 unidades básicas de saúde dedicadas a pacientes com a Covid-19.

Na segunda (25), após a decisão da OMS de suspender a pesquisa com a droga, o secretário de Saúde do Recife, Jaílson Correia, recuou e anunciou a retirada da cloroquina dos protocolos de uso dos hospitais.

“Não há medicament­o para Covid-19. O que temos são medidas não farmacológ­icas, distanciam­ento social, isolamento e medidas de higiene Natália Pasternak microbiolo­gista

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Parentes observam enterro coletivo de vítimas de Covid-19 em cemitério Parque Taruma, em Manaus, capital do Amazonas
Bruno Kelly/Reuters MANAUS MANTÉM ENTERROS COLETIVOS PARA EVITAR COLAPSO FUNERÁRIO Parentes observam enterro coletivo de vítimas de Covid-19 em cemitério Parque Taruma, em Manaus, capital do Amazonas

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