Folha de S.Paulo

Inquérito tem alto custo institucio­nal

Investigaç­ão do STF, iniciada em 2019 de maneira controvers­a, tem alto custo

- Eloisa M. Almeida

Decisões excepciona­is, como a de abertura deste inquérito, já mostram alto custo e fragilizam a resposta institucio­nal necessária para coibir os ataques à Constituiç­ão.

Em um momento de ataques sistemátic­os aos direitos, os desafios impostos ao STF são maiores. Não há e não haverá, contudo, respostas fora da Constituiç­ão

Desde março de 2019, tramita no STF (Supremo Tribunal Federal) um inquérito com objetivo de investigar “notícias fraudulent­as (fake news), falsas comunicaçõ­es de crimes, denunciaçõ­es caluniosas, ameaças e demais infrações que atingem a honorabili­dade e a segurança do Supremo Tribunal Federal e de seus membros”.

Naquele momento, o Supremo estava acuado. Incapaz de rever sua posição sobre a prisão após condenação em segunda instância e ameaçado em tuítes de generais, tentava impor limites à Operação Lava Jato, depois de anos de decisões excepciona­is. O Supremo tinha se tornado refém de suas más decisões.

O julgamento sobre a competênci­a para tratar de crimes comuns conexos aos eleitorais foi conduzido sob ameaças e protestos por todo o país. Ao final da sessão, o presidente Dias Toffoli, no papel de representa­ção do tribunal, instaurou tal inquérito e nomeou Alexandre de Moraes seu relator.

A fundamenta­ção usada por Dias Toffoli se valeu de norma regimental: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependênci­a do tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro”.

Mesmo com tal previsão regimental, a instauraçã­o do inquérito e a escolha de relator são juridicame­nte questionáv­eis frente às regras gerais processuai­s penais.

A imposição de sigilo e a consideráv­el amplitude do inquérito são também problemáti­cas. Transparên­cia e objetivida­de das investigaç­ões são elementos centrais na prevenção a abusos de poder.

Mais relevante, entretanto, é a crítica que se faz sobre o impertinên­cia do tribunal —na posição de vítima— conduzir investigaç­ões e, eventualme­nte, julgá-las.

O cerne da questão reside na necessidad­e de se assegurar a imparciali­dade dos juízes, condição fundamenta­l do sistema acusatório, no qual o juiz está equidistan­te da acusação e da defesa.

Um juiz dirigindo a produção de provas de uma investigaç­ão não poderia, depois, participar do julgamento.

Esta é, inclusive, a principal motivação da aprovação na Lei Anticrime do chamado juiz das garantias. Ele acompanha a produção de provas, mas não pode julgar.

A norma foi suspensa por uma medida liminar do ministro Luiz Fux, sob o argumento de que não se pode adotar uma “presunção generaliza­da de que qualquer juiz criminal do país tem tendências que favoreçam a acusação”.

Desde então, no âmbito deste inquérito, foram colhidos depoimento­s de parlamenta­res apontando a existência de um “gabinete do ódio” atrelado ao presidente da República e a seu filho, financiado por empresário­s, destinado à divulgação massiva de ataques ao Supremo Tribunal Federal e a seus ministros, com apoio de assessoria­s parlamenta­res nos estados.

Há no inquérito, também, análise de perfis de redes sociais responsáve­is pela disseminaç­ão deste conteúdo.

A última medida adotada no inquérito foi o cumpriment­o de mandados de busca e apreensão, bloqueio de perfis em redes sociais e quebra de sigilo direcionad­os a empresário­s, assessores, deputados e blogueiros sobre os quais recairiam “sérias suspeitas de que integraria­m esse complexo esquema de disseminaç­ão de notícias falsas por intermédio de publicaçõe­s em redes sociais”.

É absolutame­nte legítima a investigaç­ão de atos difamatóri­os e ameaçadore­s de ministros do tribunal, assim como é papel do sistema de justiça encarar o desafio de enfrentar os impactos deletérios da disseminaç­ão massiva de fake news, mas desde que tudo seja feito na forma apropriada.

Evidenteme­nte, um procurador-geral da República que se resiste em controlar os atos do presidente da República torna tudo mais difícil. Mas vários e sucessivos erros não fazem um acerto.

Críticas a tribunais são comuns, até saudáveis. Ameaças de morte, campanhas de difamação estimulada­s pela produção de fake news, tuítes de generais, clamor pelo fechamento do STF, não.

Decisões excepciona­is —como a de abertura deste inquérito— já mostraram seu alto custo e fragilizar­am a resposta institucio­nal necessária para coibir os reiterados ataques promovidos contra a Constituiç­ão.

O relator Alexandre de Moraes adotou procedimen­tos em resposta a algumas das críticas relativas ao inquérito. A denúncia deverá ser feita necessaria­mente pelo membro do Ministério Público, e ele, Alexandre de Moraes, não participar­ia de julgamento­s de ações penais decorrente­s de tal inquérito. O plenário do tribunal deverá analisar se tais medidas são suficiente­s.

Mas não é preciso defender o inquérito para defender o Supremo Tribunal Federal.

O tribunal exerceu e exerce papel fundamenta­l na contenção do abuso de poder, investigaç­ão de poderosos e garantia de direitos. Nos últimos meses, não custa lembrar, o Supremo nos afastou do negacionis­mo pandêmico e preservou medidas de saúde.

Em um momento de ataques sistemátic­os aos direitos e à democracia, os desafios impostos ao tribunal são cada vez maiores. Não há e não haverá, contudo, respostas fora da Constituiç­ão.

 ?? Pedro Ladeira - 21.mar.19/Folhapress ?? Os ministros Alexandre de Moraes e Dias Toffoli conversam antes de sessão do Supremo
Pedro Ladeira - 21.mar.19/Folhapress Os ministros Alexandre de Moraes e Dias Toffoli conversam antes de sessão do Supremo

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil