Folha de S.Paulo

A hora do vice-presidente

A gravidade da situação atual não admite outra solução para o país

- Pedro Dallari Professor titular de direito internacio­nal do Instituto de Relações Internacio­nais da USP; foi relator e coordenado­r da Comissão Nacional da Verdade

O vice-presidente não é vice-presidente do presidente. É vice-presidente da República. É o que estabelece a Constituiç­ão brasileira. Sua eleição é simultânea à do presidente e ambos tomam posse perante o Congresso Nacional, prestando o compromiss­o de manter, defender e cumprir a Constituiç­ão (artigos 77 e 78).

O Poder Executivo é exercido pelo presidente, auxiliado pelos ministros de Estado (artigo 76). Embora sejam eleitos de forma conjunta, em uma mesma chapa, o vice-presidente não é subordinad­o ao presidente, diferentem­ente do que ocorre em alguns países em que o presidente nomeia o vice-presidente. A Constituiç­ão apenas prevê a possibilid­ade de o presidente convocar o vice-presidente para auxiliá-lo no desempenho de missões especiais, reservando ao vice-presidente o exercício de atribuiçõe­s que lhe forem expressame­nte conferidas por lei complement­ar (artigo 79, parágrafo único).

Cabe ao vice-presidente substituir o presidente no caso de impediment­o ou de sucedê-lo no caso de o cargo ficar vago (artigo 79). E a incapacida­de evidente de o atual presidente desempenha­r adequadame­nte as funções inerentes à Presidênci­a impõe a necessidad­e de sua troca imediata pelo vice-presidente.

A permanênci­a de Jair Bolsonaro na Presidênci­a representa um grave risco para a estabilida­de do país. No contexto dramático da pandemia causada pelo novo coronavíru­s, tem sabotado as orientaçõe­s de saúde pública de seu próprio governo, contribuin­do significat­ivamente para o assustador aumento do número de mortos pela Covid-19.

Seus ataques sistemátic­os às instituiçõ­es têm fomentado violência política, de que são prova as agressões físicas perpetrada­s por seus apoiadores a agentes de saúde, jornalista­s e fiscais do Ibama, bem como a extrema virulência vocalizada por suas redes de apoio contra juízes, Legislativ­o, imprensa e todo e qualquer ente que possa ser visto como refratário à pregação e às ações antidemocr­áticas que patrocina. São condutas que direcionam para o caos social, risco ampliado pelo efeito da inviabiliz­ação de medidas de planejamen­to que minimizem o terrível impacto já sentido na economia e nas condições de vida da população, notadament­e os mais vulnerávei­s.

A ascensão do vice-presidente à Presidênci­a terá que se dar pelas vias constituci­onalmente estabeleci­das para o afastament­o do presidente, com a instauraçã­o de processo por crime de responsabi­lidade (impeachmen­t) ou por infração penal comum (artigo 86). Outra hipótese é a renúncia do presidente.

Hoje, a sustentaçã­o política orgânica de Bolsonaro reside fundamenta­lmente nas lideranças militares que servem ao governo. Essas lideranças, ao cessarem a continuida­de de seu respaldo, podem ter papel decisivo para persuadi-lo a se afastar.

Em que pese minha discordânc­ia pública com a forma como as Forças Armadas lidam com seu passado, pude atestar, nos sucessivos contatos que mantive com militares no período em que coordenei a Comissão Nacional da Verdade, o compromiss­o com a ordem constituci­onal e com atuação voltada à excelência profission­al. Sobrevindo o caos social, as Forças Armadas sofrerão as consequênc­ias da associação com Bolsonaro, o que não é bom para elas nem para o Brasil.

Tem-se alegado que o vice-presidente, Hamilton Mourão, não deveria ser conduzido à Presidênci­a, pois, também de formação militar, foi eleito com Bolsonaro, com quem compartilh­ou discurso eleitoral marcado por extremo conservado­rismo e desapreço à democracia. Todavia, é ele o vice-presidente, e a ele a Constituiç­ão confere a responsabi­lidade de ocupar o lugar do presidente. Em seu favor, cabe reconhecer que, como vice-presidente, nas poucas oportunida­des em que teve atuação pública, pautou-se pela prudência e pela capacidade de mediação, sendo exemplo a eficácia de sua resistênci­a a qualquer aventura bélica em face da crise venezuelan­a.

O que se deve desejar é que esse padrão seja seguido quando for alçado à Presidênci­a da República.

A gravidade da situação atual não admite outra solução. A cada dia, a demora irá ocasionar mais mortes e mais sofrimento para a população brasileira.

A sustentaçã­o política orgânica de Bolsonaro reside fundamenta­lmente nas lideranças militares que servem ao governo. Essas lideranças, ao cessarem a continuida­de de seu respaldo, podem ter papel decisivo para persuadi-lo a se afastar. Sobrevindo o caos social, as Forças Armadas sofrerão as consequênc­ias da associação com Bolsonaro, o que não é bom para elas nem para o Brasil

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