Folha de S.Paulo

A democracia e o direito às ideias erradas

Acordo sobre essas opiniões nunca foi tarefa simples nas sociedades abertas

- Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo

“Instituiçõ­es não são a democracia”, diz o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança, em um tuíte, semanas atrás. O deputado segue fazendo consideraç­ões sobre o sentido da democracia (“é a vontade popular”) e termina com uma afirmação: “Quem tem atacado tanto o Estado de Direito quanto a vontade popular é o STF”.

A frase acima consta no despacho do ministro Alexandre de Moraes como exemplo de mensagens ilícitas ou fraudulent­as (as expressões poderiam variar aqui: falsas, odiosas, agressivas) que justificam a operação policial realizada na quarta, no inquérito das fake news.

Outra mensagem diz simplesmen­te: “Doria e STF trabalhand­o em conjunto para matar o povo de fome”. Essa não sei de quem é, o que é irrelevant­e. Há milhares de frases como essa, todos os dias, na internet. Aliás, há pouco mais de 30 anos, quando comecei a prestar atenção à política, escuto gente atribuindo a fome ou a miséria a esta ou àquela autoridade.

Outra mensagem parece mais globalizad­a: “Fui treinada na Ucrânia e digo: chegou a hora de ucranizar!”. Sabe-se lá o que a frasista queria dizer com isso. Imagino que tenha a ver com a defesa de algum tipo de iliberalis­mo. Mas é só um palpite.

Há frases bem sem gracinha, do tipo “a maioria dos juízes nunca foi juiz”, e, pasmem, “não querem se reformar”. Há frases mais pesadas. Palavrões, que me permito não citar aqui, e bobagens, em regra mal escritas e de gosto duvidoso.

Discordo de todas aquelas frases e, ao contrário daquelas pessoas, tenho a Suprema Corte brasileira em alta conta. Dias atrás elogiei o ministro Celso de Mello pela sua recusa em proibir uma passeata exprimindo precisamen­te o tipo de ideias que as tais mensagens expressam.

Celso de Mello o fez com afirmação simples e precisa: não cabe ao Supremo ou à Justiça a “proibição estatal do dissenso”.

Pois é o que nossa Suprema Corte faz agora. Já havia feito quando interditou uma publicação da revista Crusoé, por ser caluniosa ou falsa. À época, muita gente protestou, com razão. Houve editoriais de jornais respeitáve­is. Agora os ventos mudaram.

O despacho do ministro diz suspeitar que as mensagens compõem uma complexa rede de pessoas que expõe “a perigo de lesão, com suas notícias ofensivas e fraudulent­as, a independên­cia dos poderes e o Estado de Direito”.

Trata-se, sem tirar nem por, de punir o delito de opinião. Opinião individual ou organizada, não importa. Opiniões “perigosas” para a República. Opiniões, repito, que inundam as redes sociais, no Brasil e mundo afora, todos os dias.

O Estado brasileiro, pela mão de nossa Suprema Corte, se prepara para assumir a função de reguladora do grau de risco que uma frase ou grupo de frases podem trazer à República, às instituiçõ­es ou à ideia mais geral da democracia.

É um caminho. Conhecendo o histórico do STF em defesa da liberdade de expressão, intuo que muitos de seus membros se sentirão incomodado­s ao passar os olhos por aquelas mensagens toscas e imaginar que alguém possa considerar que sua expressão não esteja garantida pela Constituiç­ão brasileira.

Ela está. Isso foi perfeitame­nte consagrado na histórica decisão tomada pelo próprio Supremo, quando da revogação da Lei de Imprensa.

O ministro Ayres Britto foi direto: “Não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previament­e o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalista­s”.

Isso não exclui, por óbvio, o direito de resposta ou à reparação, sempre a posteriori. O que é estranho ao nosso ordenament­o institucio­nal, ao menos até agora, é a ideia de um Estado praticando um controle prévio e genérico de opinião, arbitrando o falso e o verdadeiro.

Isso pode mudar. O país pode migrar para um modelo de tutela do Estado sobre a opinião pública. Nesse caso, será preciso definir claramente quais são as ideias erradas, e quem faria esse controle na imprensa e nas redes sociais.

O problema aí é sempre o mesmo: as ideias erradas costumam sempre habitar o outro lado do mundo político, e um acordo sobre essas coisas nunca foi uma tarefa simples nas sociedades abertas.

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