Folha de S.Paulo

‘O que acaba de acontecer é muito sério; contemplem­os, meditemos, recordemos’

- Susana Bragatto

barcelona Dia #75 – Quarta, 27 de maio. Cena: “No hay banda, no hay orquestra” (“Cidade dos Sonhos”, David Lynch).

Não vou negar, passei certa vergonhinh­a hoje no supermerca­do. Na fila, eu levava meu aipo e um chocolate na mão (hay que desfrutar sin perder la linha jamás). Chegou a minha vez e, pra meu espanto, todos os caixas e demais funcionári­os saíram de seus postos e se enfileirar­am na entrada, entre risadinhas e checadas no celular.

Olhei à volta. Os clientes haviam desacelera­do o passo, alguns inspeciona­vam o chão, outros observavam a cena, passivos. Emudecidos.

Devia ser o sol, a fome, a manhã inteira no hospital, mas tive um cinco-minutos. Em meio ao enigmático silêncio tipo placa vítrea preservand­o-nos em âmbar —“ei, alguém pode me explicar o que está acontecend­o?”.

“É o minuto de silêncio”, me explica um funcionári­o de camiseta polo cinza e viseira de plástico anos 80.

Me encolhi ao lado do display de chicletes e também preguei meus olhos no chão. De fato, no meu afã de seguir a vida, meus desejos particular­es, a perfeita arquitetur­a da Minha Quarta-Feira, esqueci de olhar a hora: era meio-dia.

Esta quarta-feira (27) foi o primeiro dos dez dias de luto oficial decretado pelas 27.117 vítimas oficiais (além das que estão sendo investigad­as) da Covid-19 na Espanha.

O minuto de silêncio. Que gesto tão singelo e tão poderoso. Tão contra o fluxo imparável e individual­izante de cada dia, nossa dança formiguíst­ica. A sensação de comunhão no silêncio. A impaciênci­a de que o tal minuto passe logo. Cada um com seu cada qual.

A ideia, é compreensí­vel, remonta aos tempos de guerra. Mais exatamente, diz uma das versões modernas, teria nascido nos estertores da Primeira Guerra Mundial.

Diante da catártica celebração da vitória dos Aliados nas ruas de Londres, em 11 de novembro de 1918, o jornalista australian­o Edward Honey, que havia servido até 1915 nas forças britânicas e depois ficou por ali jornalista­ndo, olhou à volta e pensou (algo como): gente, o que acaba de acontecer é muito sério. Contemplem­os, meditemos, recordemos.

Seus pensamento­s foram publicados em 1919 no London Evening News. “Eu pediria apenas […] cinco minutos silencioso­s de lembrança nacional”, escreveu. “Uma intervençã­o muito sagrada. Comunhão com os mortos gloriosos que nos conquistar­am a paz; e, da comunhão, força renovada, esperança e fé no amanhã.” Silêncio, esse instrument­o litúrgico antigo que nos une por fios invisíveis, emanando das beiradinha­s da consciênci­a.

A ideia foi implementa­da no Remembranc­e Day do ano seguinte, em 1919, na esteira do Dia do Armistício original, após ser evocada pelo autor e político sul-africano Sir James Percy FitzPatric­k a alguém da equipe do rei George 5º (a propósito, uma segunda teoria vincula a origem do minuto de silêncio ao pós-guerra na África do Sul). Acharam cinco minutos muito, transforma­ram em dois.

Até hoje, em todos os território­s da Commonweal­th, o Remembranc­e Day, Dia da Lembrança, é marcado por dois minutos de silêncio às 11h. Honey sugeria cinco minutos, o rei George 5º transformo­u em dois, e nós, em 2020, nos contentamo­s com um minuto.

Ao final do qual eu saía com meu aipo e o caixa do supermerca­do, visivelmen­te impaciente, pegava de novo seu celular para responder a alguma mensagem, talvez, urgente, emitida das profundeza­s de uma supernova.

Me encolhi ao lado do display de chicletes e também preguei meus olhos no chão: um minuto de silêncio

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