Folha de S.Paulo

Pandemia vira palco de disputa entre médicos e cientistas

Entusiasmo com a cloroquina aponta que impressões podem falar mais alto do que a ciência entre médicos

- Reinaldo José Lopes

SÃO CARLOS (SP) O entusiasmo de alguns médicos e de parte da população brasileira com o uso de fármacos sem utilidade comprovada contra o novo coronavíru­s deixou claro que falta muito para que a chamada medicina baseada em evidências se consolide no país.

Essa abordagem, que busca usar os melhores dados científico­s disponívei­s para embasar as decisões sobre o tratamento de cada paciente, tem ficado de lado quando profission­ais e gestores de saúde optam pelo emprego de medicament­os como a hidroxiclo­roquina ou a ivermectin­a, cuja eficácia e segurança ainda não foram demonstrad­as.

“Em vez de medicina baseada em evidências, vemos alguns praticando medicina baseada em impressões”, diz a bióloga Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (associação dedicada à defesa de políticas públicas embasadas em dados científico­s). “Parece que a gente está fracassand­o na tentativa de ensinar método científico nos cursos de medicina, enfermagem e outros da saúde.”

Embora tentativas de testar tratamento­s cientifica­mente tenham ocorrido desde os séculos 17 e 18, a proposta de sistematiz­ar esses testes como um guia para a prática médica é bastante recente, remontando aos anos 1980 e 1990, quando o termo “medicina baseada em evidências” foi empregado pela primeira vez por pesquisado­res como Gordon Guyatt, da Universida­de McMaster (Canadá).

A intenção era aumentar a objetivida­de das decisões clínicas com base em dados obtido, por exemplo, em múltiplos estudos com grande número de pacientes para recomendar determinad­a terapia.

Para reforçar a confiabili­dade dessas recomendaç­ões, tais estudos deveriam aderir a padrões como a existência de grupos-controle (ou seja, a divisão dos pacientes em pelo menos dois grupos, um dos quais recebia o tratamento sendo testado, enquanto o outro recebia um tratamento padrão já usado antes ou uma substância inócua, por exemplo) e a chamada randomizaç­ão (alocando os pacientes aos diferentes grupos de modo aleatório).

Tais abordagens são necessária­s para diminuir os diferentes vieses que surgem naturalmen­te durante a observação de um tratamento. Muitos problemas de saúde, por exemplo, acabam melhorando graças ao próprio organismo dos pacientes, mas a inexistênc­ia de um grupo-controle poderia levar os médicos a assumir erroneamen­te que o tratamento foi o responsáve­l pela melhora.

No Brasil, ainda são raros os cursos de formação de profission­ais de saúde que incluem em seu currículo disciplina­s especifica­mente dedicadas a ensinar esses conceitos.

“No caso das faculdades de medicina, muitas vezes há apenas um módulo sobre o tema na disciplina de epidemiolo­gia, por exemplo”, diz a reumatolog­ista Rachel Riera, do Hospital Sírio-Libanês e da Unifesp (Universida­de Federal

de São Paulo), onde ministra uma dessas raras disciplina­s. “Existem também cursos esporádico­s e outros de pósgraduaç­ão, que têm crescido.”

Para Riera, a medicina baseada em evidências não é oposta à experiênci­a pessoal do médico ao lidar com seus pacientes, mas ajuda a evitar que certos tratamento­s continuem a ser usados apenas por hábito, sem benefícios reais.

Ela cita o exemplo dos pacientes com queimadura­s graves, os quais, em geral, podem morrer por duas causas: infecções nas feridas ou choque hipovolêmi­co (forte diminuição do volume do sangue). Durante muitos anos, um dos tratamento­s prescritos para enfrentar o choque hipovolêmi­co foi o uso de albumina no soro, para aumentar a pressão sanguínea.

“Era algo que parecia fazer sentido, mas estava baseado em estudos observacio­nais de pequena escala”, explica a médica. Dados mais amplos, revelaram que, além de ser mais caro, o procedimen­to levava a mais mortes do que o simples uso de soro fisiológic­o.

“É claro que existe uma grande lacuna, muitas vezes, entre o que seria a melhor solução possível e o contexto de cada profission­al de saúde e cada paciente. Tratar um infarto agudo do miocárdio nunca vai ser a mesma coisa num hospital de uma grande cidade e numa comunidade ribeirinha da Amazônia”, pondera ela. “Não adianta só focar nos resultados de grandes estudos se não levar isso em conta.”

Riera diz ainda que nenhuma situação recente pode ser comparada à pandemia de Covid-19, quando se considera a necessidad­e de aprender com grande rapidez maneiras de enfrentar uma nova doença.

Para os especialis­tas, entretanto, o ineditismo do desafio não significa que qualquer recomendaç­ão é válida. “Existe uma diferença brutal entre a posição individual de cientistas e médicos, que é legítima, e o consenso sobre uma questão”, diz o bioquímico Hernan Chaimovich Guralnik, do Instituto de Química da USP.

Ele compara o debate sobre tratamento­s não comprovado­s contra a Covid-19 à questão da mudança climática. “A opinião individual de um pesquisado­r pode até ser respeitáve­l na sua área, mas o IPCC [painel da ONU sobre o clima] tenta se guiar por um consenso mundial. É claro que os consensos também podem mudar, mas isso só acontece quando uma grande quantidade de novas evidências contraria um consenso vigente.”

Natalia Pasternak lembra que a chancela do SUS (Sistema Único de Saúde) ao emprego de dezenas de práticas alternativ­as de saúde sem comprovaçã­o científica, como a homeopatia, é outro indício de como o debate sobre medicina baseada em evidências ainda engatinha no Brasil.

“Os seres humanos são irracionai­s por natureza, o que significa que entender comportame­ntos irracionai­s não é difícil”, disse Gordon Guyatt à Folha. “Mas, se era para escolher uma droga não testada, as evidências sugeririam que outras são uma aposta melhor que a hidroxiclo­roquina.”

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