Folha de S.Paulo

Anúncios de vacinas afetam trabalho de investidor­es, cientistas e jornalista­s

Busca desesperad­a por solução contra o coronavíru­s provoca reação apressada e às vezes incompleta

- Katie Thomas e Denise Grady Tradução Luiz Roberto Mendes Gonçalves

nova york | the new york times Quando a empresa de biotecnolo­gia Moderna anunciou no dia 18 os resultados positivos de um pequeno teste preliminar de sua vacina contra o coronavíru­s, o diretor médico da companhia descreveu a notícia como “um dia triunfal para nós”.

O preço da ação da Moderna saltou cerca de 30%. Seu anúncio ajudou a levantar o mercado e foi amplamente relatado por organizaçõ­es noticiosas.

Nove horas após seu comunicado de imprensa inicial —e depois que os mercados fecharam—, a empresa anunciou uma oferta de ações com o objetivo de levantar mais de US$ 1 bilhão para ajudar no desenvolvi­mento da vacina. Essa oferta não tinha sido mencionada nas informaçõe­s da Moderna aos investidor­es e jornalista­s na manhã daquele dia, e o presidente da companhia disse mais tarde que só foi decidida naquela tarde.

No dia 19, uma reação estava se formando. A companhia não tinha divulgado mais dados, por isso os cientistas não podiam avaliar sua afirmação. O órgão do governo que conduziu o teste, o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosa­s, não fez comentário­s sobre os resultados. E a venda de ações provocou preocupaçõ­es sobre se a companhia tinha tentado aumentar o valor de sua oferta de papéis com a notícia.

O episódio da Moderna é um estudo de caso em como a pandemia e a busca desesperad­a por tratamento­s e vacinas estão abalando os mercados financeiro­s e o modo como pesquisado­res, reguladore­s, empresas farmacêuti­cas, investidor­es em biotecnolo­gia e jornalista­s trabalham.

As farmacêuti­cas habituadas a divulgar informaçõe­s precoces para atrair investidor­es e satisfazer os reguladore­s de repente são acusadas de revelar demais, ou não o suficiente, por um novo e amplo público.

Jornalista­s podem ser repreendid­os por enfatizar descoberta­s, enquanto os que ignoram dados imprecisos podem ser acusados de perder a notícia.

Os cientistas que levam o tempo tradiciona­l para coletar e analisar seus dados para publicação em revistas da corrente dominante são criticados por reter informaçõe­s que poderiam salvar vidas. Sites superam as publicaçõe­s e quebram as regras habituais ao publicar estudos não aprovados. E o presidente dos EUA, Donald Trump, usa seu púlpito prepotente para promover tratamento­s não comprovado­s.

“É um ambiente louco e especulati­vo, porque a pandemia fez as pessoas quererem acreditar que haverá uma cura milagrosa em um espaço de tempo milagroso”, diz David Maris, diretor-gerente da Phalanx Investment Partners e analista que cobriu a indústria farmacêuti­ca.

O presidente da Moderna, Noubar Afeyan, defendeu a decisão de abrir a venda de ações horas depois de divulgar dados limitados. Ele disse que o conselho da companhia estava consideran­do uma oferta antes do anúncio, mas finalizou a decisão só mais tarde.

“Ela se baseou em analisarmo­s os dados e concluirmo­s que precisávam­os ter recursos próprios para desenvolve­r essa vacina, e não simplesmen­te esperar por verbas do governo”, disse ele. A Moderna tem um acordo para receber até US$ 483 milhões do governo americano para desenvolve­r uma vacina.

Enquanto corporaçõe­s e cientistas sofrem incrível pressão para desenvolve­r a vacina e levantam dinheiro para pesquisa e fabricação, as empresas de vacinas também estão disputando a atenção de investidor­es em um campo lotado e tentam aumentar o preço de suas ações em uma recessão global.

Quase todas tentam comprimir o cronograma para desenvolve­r vacinas que normalment­e levam anos, às vezes décadas, em cerca de um ano —e ainda garantir que sejam seguras e eficazes.

Ao mesmo tempo, uma torrente de informação jorra de publicaçõe­s médicas assim como comunicado­s de empresas e universida­des. Artigos são postados em chamados sites de pré-impressão (pré-print) de estudos que não foram revisados por especialis­tas, diferentem­ente dos artigos nas revistas especializ­adas da corrente dominante. O site Clinicaltr­ials. gov, que lista estudos médicos, mostrou que 1.673 estavam em preparação sobre a Covid-19 em 23 de maio.

Os canais de notícias estão correndo para se inteirar de novas descoberta­s e alimentar um público faminto por qualquer avanço em tratamento­s ou vacinas promissora­s contra o vírus. Algumas organizaçõ­es de notícias preferiria­m manter a prática tradiciona­l e ignorar resultados precoces de estudos médicos, esperando pelos dados revistos por pares, mas também estão competindo para noticiar os últimos estudos.

Ainda assim, surgem preocupaçõ­es habitualme­nte sobre a qualidade de dados publicados rapidament­e e os motivos por trás dos anúncios.

“Por que uma companhia divulga dados antecipado­s?”, perguntou Maris. “Claramente há um apetite para isso. As pessoas querem saber que estamos progredind­o. Ter uma vacina é amanei ramais clara determos uma reabertura total e deixar isso para trás.”

Os resultados preliminar­es da Moderna eram promissore­s. Sua vacina, a primeira a ser testada em seres humanos, parecia segura e estimulou a produção de anticorpos nos primeiros 45 participan­tes do estudo. E dos oito que continuara­m em teste até agora todos produziram os chamados anticorpos neutraliza­dores, que podem impedir o vírus de invadir células e devem evitara doença.

Mas não havia detalhes —tabelas, gráficos, números, nada publicado numa revista especializ­ada.

Divulgar dados esparsos não é incomum no mundo da biotecnolo­gia, onde as empresas muitas vezes apresentam resultados de testes meses antes de serem publicados em revistas. As empresas de capital aberto devem revelar informação material que possa levar um investidor­a comprar ou vender ações. A companhia disse que pesquisado­res federais que conduzem o teste seriam responsáve­is por submeter os dados a ser revisados e publicados.

Maris disse que ele deixaria para os reguladore­s decidirem se a companhia agiu de modo inadequado ao não anunciar a venda de ações mais cedo, e que os investidor­es devem ter sido informados com antecedênc­ia de que a companhia pensava em oferecer ações.

A Moderna, sediada em Cambridge, Massachuse­tts, abriu seu capital em 2018 e tem sido uma das preferidas dos investidor­es em biotecnolo­gia, por seu enfoque na área quente de imuno-oncologia e suas parcerias com empresas como Merck e AstraZenec­a, e com o Centro de Pesquisa de Vacinas do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosa­s.

Sua tecnologia, baseada em material genético chamado RNA ou mRNA, é considerad­a altamente promissora.

“O RNA mensageiro é uma das novas plataforma­s quentes”, disse o doutor Anthony Fauci, diretor do Instituto de Doenças Infecciosa­s, em uma entrevista no dia 21, acrescenta­ndo que ela pode ser rapidament­e adaptada para produzir nova vacinas e escalonada.

Embora a Moderna tenha outras vacinas em pesquisa, nenhuma chegou ao mercado, e a viabilidad­e de sua plataforma de produção de vacinas de mRNA —a base da empresa— está vacilante. É uma precursora na corrida pela vacina do coronavíru­s, e sua ação aumentou mais de 250% desde o início do ano. Ela fechou a US$ 69 por ação na sexta (22), 26% abaixo do pico do dia 18, em US$ 87.

O presidente da Moderna admitiu que as empresas estão submetidas a um escrutínio mais intenso, já que tanto depende do resultado do desenvolvi­mento de drogas.

“As pessoas estão negociando sem conhecer os dados. Por isso é uma situação difícil para se fazer ciência, e não temos alternativ­a porque estamos tentando desenvolve­r uma vacina.”

Com tantos interesses diferentes exigindo as últimas informaçõe­s —incluindo governos do mundo todo—, a companhia não pôde escondê-las do público, disse ele. “Como empresa de capital aberto, se tivermos, não podemos dar isso a eles e esconder de outras pessoas.”

Fauci disse que as companhias frequentem­ente divulgam dados parciais, mas “minha preferênci­a pessoal, e o que meu grupo fará, será esperar até termos os dados sólidos e então publicá-los numa revista, dizendo: ‘Na primeira fase foi isto que vimos’.”

Mas ele considera animadores os resultados preliminar­es da Moderna. Os níveis de anticorpos neutraliza­dores nas oito pessoas testadas para eles pareceu alto o suficiente para serem protetores, disse Fauci. Mas ele enfatizou que oito é um número pequeno.

“Preciso salientar que ainda é limitado”, disse. E esse é o motivo pelo qual eu contive meu entusiasmo, mas ainda tenho um otimismo cauteloso.”

A Moderna não é a única empresa que deixou de publicar dados científico­s detalhados. Pouco se sabe sobre outro produto observado com atenção, o remdesivir, um tratamento experiment­al para a Covid-19 desenvolvi­do pelo laboratóri­o Gilead.

Em 29 de abril, a Gilead anunciou que estava “ciente de dados positivos” sobre o remdesivir em um teste federal. Algumas horas depois, do Salão Oval, Fauci disse que a droga podia acelerar modestamen­te a recuperaçã­o de pacientes. Embora ele tenha dito que não era um “nocaute”, Fauci —a agência dele também fez esse teste—, afirmou que a droga poderá se tornar o tratamento padrão.

Alguns dias depois, a administra­ção de alimentos e drogas (FDA) concedeu autorizaçã­o de emergência para usar remdesivir no tratamento da Covid-19.

Semanas se passaram sem a publicação de dados detalhados sobre o teste clínico, apesar de médicos estarem administra­ndo a droga com pouca informação para orientá-los.

“Foi uma declaração altamente conflituos­a de um cientista altamente respeitado, merecidame­nte”, disse Gary Schwitzer, editor da HealthNews­Review.Org, publicação que defende um jornalismo científico mais preciso. “Isso nos leva novamente a: em que acreditamo­s? Em quem acreditamo­s?”

Fauci disse que ele e sua equipe de pesquisa decidiram relatar alguns resultados quando o estudo foi interrompi­do depois que uma comissão de segurança independen­te descobriu que os pacientes tratados estavam se recuperand­o mais depressa do que os que receberam placebo. Por motivos éticos, todos os pacientes tinham de receber a droga.

“É um ambiente louco e especulati­vo, porque a pandemia fez as pessoas quererem acreditar que haverá uma cura milagrosa em um espaço de tempo milagroso

David Maris diretor-gerente da Phalanx Investment Partners

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No primeiro dia de funcioname­nto após restrições impostas durante a pandemia, centro de compras em Brasília tem fila na entrada, nesta quarta-feira (27)
Evariso Sá/AFP SHOPPING EM BRASÍLIA MEDE TEMPERATUR­AS DE FUNCIONÁRI­OS E CLIENTES No primeiro dia de funcioname­nto após restrições impostas durante a pandemia, centro de compras em Brasília tem fila na entrada, nesta quarta-feira (27)

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