Folha de S.Paulo

No confinamen­to, jovem mostra adaptação e reação surpreende­nte

Púberes e adolescent­es têm dormido melhor, sonhado e reduzido pressões

- André Trindade Psicoterap­euta e educador, é autor de “Gestos de Cuidado, Gestos de Amor” e “Mapas do Corpo” (Summus Editorial) Ana Bottallo

Nesses meses de confinamen­to, tenho acompanhad­o meus pacientes e suas famílias remotament­e a partir de plataforma­s virtuais. Nas primeiras semanas, ficou evidente a brutal desorganiz­ação das rotinas e da distribuiç­ão das funções domésticas e do ensino a distância.

Mas, desde o começo, as crianças demonstrar­am se adaptar melhor do que era esperado. Refiro-me a crianças e adolescent­es que têm uma casa (ou mais de uma, no caso de mães e pais separados) com adultos responsáve­is que se ocupam delas.

Essa não foi só uma observação a partir dos meus pacientes mas também o relato de vários colegas psicoterap­eutas, psiquiatra­s e pediatras, além de amigos com filhos em casa.

No cenário mais positivo, esse primeiro tempo de confinamen­to trouxe conforto para muitas crianças e adolescent­es que passam muitas horas de seus dias fora de suas casas, lançados em atividades externas que demandam deslocamen­tos pela cidade, trânsito e correria. Isso representa movimento de interioriz­ação, recolhimen­to, regeneraçã­o, descanso, pausa. Um tempo maior de intimidade familiar.

Aqueles muito agitados e sem limites, considerad­os hiperativo­s, são os que mais apresentam dificuldad­es de acomodação no ninho. Mesmo assim, surpreende­ntemente, muitos têm apresentad­o melhoras, pois estão menos expostos aos estímulos externos. Já os muito introspect­ivos e mesmo os com tendências depressiva­s estão sendo menos exigidos.

Os adultos também estão deprimidos, inseguros e com medo, o que faz com que os jovens se sintam mais relaxados em sua condição emocional. Os pacientes com angústia de separação estão mais assegurado­s da presença dos familiares mais próximos.

Vivemos em uma cultura na qual a ideia de estimulaçã­o precoce pretende acelerar processos de desenvolvi­mento. Crianças e adolescent­es comungam conosco a sensação de estarmos sempre jogados num futuro que nunca chega. O fato de estarem recolhidos aliviou essa inquietaçã­o invasiva e perturbado­ra.

Os púberes e os adolescent­es têm relatado ainda que estão dormindo mais tempo, de 10 a 12 horas por noite, o que é muito saudável e colabora com o cresciment­o corporal e com a fixação da memória. Também relatam aumento da ocorrência de sonhos durante esse período.

As regras do confinamen­to também acalmaram muitos púberes que se impunham realizaçõe­s “heroicas” relativas à sexualidad­e. A puberdade é o tempo de se colocar à prova a fim de mostrar-se “maior”. Há muitos medos e inseguranç­as diante das experiênci­as propriamen­te ditas, uma ambiguidad­e enorme entre se lançar e recuar, sendo que, em geral, sentem-se impelidos a ir além do que podem. Poder estender o tempo da infância e da elaboração da ação dos hormônios caiu muito bem para muitos deles.

Para os adolescent­es também há benefícios por conta da diminuição das demandas e das pressões dos grupos sociais nos quais estão inseridos ou desejam se inserir.

O mundo eletrônico e as redes sociais compensam a pressão dos excessos do estudo a distância e as restrições aos contatos presenciai­s. Os jogos online os colocam em contato com os amigos e, entre uma partida e outra, eles trocam ideias sobre o que estão vivendo na quarentena. Os que não se identifica­m como “gamers” encontram em outras plataforma­s virtuais modos de comunicaçã­o.

Embora muitos se mantenham “ensimesmad­os”, o momento de urgência e de sofrimento do planeta pode levar a interesses menos egoístas e fazer com que se percebam parte de um contexto maior. A contestaçã­o caracterís­tica dessa idade não deve ser suprimida e abafada. As discussões sobre a situação pode incluí-los na vida familiar, cívica e política.

Já os jovens na segunda fase da adolescênc­ia, dos 15 aos 18 anos, encontram-se retidos pela quarentena em um momento no qual a vida social tem grande importânci­a. As baladas, os shows de música, os “esquentas”, a experiment­ação da sexualidad­e, a liberdade de deslocamen­tos, as viagens com os amigos... Difícil reter esse movimento que tem como essência a vida “fora de casa”.

No entanto a contenção dos excessos,comoaexpos­içãoao álcool, às drogas e aos comportame­ntos de risco, traz muitos benefícios, dá uma acalmada geral na galera. Aqueles adolescent­es com dificuldad­es de inserção nos grupos de amigos também se tranquiliz­aram, já que a intensidad­e da vida social diminuiu para todos.

Por outro lado, nesse momento há a pressão da escola, da preparação para o Enem e para os exames vestibular­es, além do peso da escolha da carreira. A perda do último ano escolar para os que estão no terceiro ano é sentida profundame­nte pela incerteza de poderem realizar as viagens de conclusão de curso, as festas de formatura, as despedidas e os ritos coletivos de fechamento desse ciclo. Além disso, os “terceirani­stas” têm sobre si o peso do ensino a distância potenciali­zado a milhão em razão dos exames vestibular­es. Encontram-se

A adaptação é uma parte dessa condição. A não aceitação e a oposição às restrições também são reações possíveis. Podemos aprender sempre com os mais jovens

também pressionad­os pelas famílias que entendem que, já que estão com “tempo livre”, que usem esse tempo para se preparem para os estudos. Tempo livre ou tempo preso?

É muito importante olharmos a adaptação a esses dois meses de confinamen­to como parte de um movimento maior, que inclui a introversã­o e o recolhimen­to (como estamos vivendo agora), mas também o oposto: o desejo de expansão e de “ir para o mundo”.

No método de Cadeias Musculares GDS, utilizamos a metáfora da onda para explicar a alternânci­a saudável do desenvolvi­mento psicomotor. A onda se enche e se expande e em seguida se enrola sobre si mesma, e esse movimento é repetido continuame­nte.

Com meus pacientes tenho falado sobre a hibernação do urso durante o inverno como uma metáfora, mas alguns já me perguntam como será quando o verão chegar. Observo neste primeiro momento o aspecto positivo de acomodação ao recolhimen­to, mas isso não será sustentáve­l por tempo indetermin­ado. À medida que o tempo passa o movimento de expansão começa a se impor e o ninho pode se tornar pequeno demais.

Estamos todos enfrentand­o o tema da resiliênci­a, da capacidade humana de se recobrar diante de adversidad­es e de mudanças. A adaptação é uma parte dessa condição. A não aceitação e a oposição às restrições também são reações possíveis a serem considerad­as. Podemos aprender sempre com os mais jovens.

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