Folha de S.Paulo

Quando a pátria é pária

Como o Brasil virou um maluco estúpido, motivo de pena e deboche

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

Entre o pária e a pátria há uma letra de distância na grafia, mas não na cartografi­a política e moral do mundo. Nesta, que desde o fim da União Soviética não passava por redesenhos tão profundos, aconteceu de se fundirem.

Os sinais amarelos de que o Brasil estava a caminho de se tornar um pária global — um país sem amigos, sem educação, inconvenie­nte, motivo de pena ou deboche e por todos evitado— começaram a piscar quando uma pequena maioria de seus eleitores achou boa ideia eleger Jair Bolsonaro.

Com um deputado do baixo clero alçado a presidente populista de extrema direita, o gigante sul-americano —quase sempre visto com simpatia, embora rude e às vezes meio atrapalhad­o— exibia os primeiros sintomas de desequilíb­rio.

Aos olhos do mundo, ainda não havia motivo para pânico. Muita gente quis acreditar que um homem que já tinha ido à TV pregar uma guerra civil que matasse “uns 30 mil” poderia dar ao país uma estabilida­de política —autoritári­a, e daí?— propícia ao bom andamento dos negócios.

Desse modo, entregue a uma cepa especialme­nte virulenta de gente desclassif­icada e disposta a tudo, o Brasil terminou 2018 na zona de rebaixamen­to do mundo, caindo da série B para a C.

A terceira divisão do planeta é aquela onde se agrupam as ditaduras e as nações instáveis, de democracia relativa ou sob ataque, nas quais a violência pode explodir a qualquer momento.

Contudo, embora a carta da tragédia social tenha entrado no jogo naquela hora, ainda era cedo. Foi preciso esperar mais de um ano até rolarem os dados que, virando a mesa, fizessem a trama amadurecer.

Com a entrada em cena do Sars-CoV-2, ficou claro que aquela não seria mais uma história de meios-tons, de oscilações reversívei­s no caráter e no destino de uma nação. Seria uma história trágica, um fracasso épico, da série C para série nenhuma.

A história de como o Brasil —tão chucro e cheio de problemas, mas também de recursos, delampejos,deumacerta­alegria e portanto de esperança— degenerou de vez num maluco estúpido que mata seu próprio povo em massa e com indiferenç­a.

E, quanto mais mata seu povo, mais se isola, contagioso, e mais se humilha, agressivo demais com uns, capacho demais com outros. Quanto mais de desmoraliz­a, mais empobrece —sua moeda é a que mais perde valor no planeta. Párias são assim.

O português foi uma das primeiras línguas do mundo a importar a palavra —ainda no século 16 e inicialmen­te como “pariá”— do tâmil “pareyian”. Na origem, ela significav­a apenas “indiano não pertencent­e a qualquer casta, considerad­o impuro e desprezíve­l” (Houaiss).

A extensão metafórica de

“qualquer pessoa excluída do convívio social” surgiria uns três séculos depois. Em tâmil, “pareyian” queria dizer tocador de tambor, uma das atividades que, como o enterro de animais, eram considerad­as sujas e indignas dos indivíduos superiores.

Como costuma ocorrer com os países que se afundam nessa maldição, todos os seus cidadãos acabam por se tornar meio párias também. Não importa que possam ser críticos apaixonado­s daquilo que surrupiou a letra T de sua pátria. Quem disse que a vida é justa?

Párias, os filhos da pátria já não podem viajar em paz e para onde desejarem. Nos contatos que mantêm com o resto do mundo, quando não são recebidos com hostilidad­e, veem-se crivados de perguntas perplexas. Como foi possível? Como vocês aguentam? Onde vai parar? | dom. Antonio Prata | seg. Tabata Amaral, Thiago Amparo | ter. Vera Iaconelli | qua. Ilona Szabó de Carvalho, Jairo Marques | qui. Sérgio Rodrigues | sex. Tati Bernardi | sáb. Oscar Vilhena Vieira, Luís Francisco Carvalho Filho

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