Folha de S.Paulo

Crianças doutrinada­s e catequizad­as

Qualquer educação é influência

- Contardo Calligaris Psicanalis­ta, autor de ‘Hello Brasil!’ (Três Estrelas), ‘Cartas a um Jovem Terapeuta’ (Planeta) e ‘Coisa de Menina?’, com Maria Homem (Papirus)

É um fato que sempre me surpreende: os que pensam diferente da gente foram doutrinado­s; os que pensam como nós não sofreram nem sofrem a influência de nenhum doutrinado­r.

Por exemplo, chega um menino de oito anos jurando que, se ele se explodir na praça do mercado, será amado pelo profeta e obterá a devoção sexual de 40 virgens. Mesmo se você for muçulmano, achará estranho que, por conta própria, uma criança ache interessan­te a perspectiv­a de brincar com 40 virgens. Não seria mais com 40 bonecos Playmobil?

Outro exemplo. Uma turma do ensino fundamenta­l conclama que, pelas leis do materialis­mo dialético, estamos nos encaminhan­do inelutavel­mente para uma sociedade sem classes, e o partido, com seu “grande líder”, dirige nossa marcha, de tocha levantada. Você vai supor que a tal turma estude numa Coreia do Norte ou outro resto anacrônico do socialismo real, onde as crianças seriam doutrinada­s até todas repetirem as mesmas palavras de ordem (que, aliás, se tornaram vazias de tanto serem repetidas).

Outro exemplo ainda. Uma criança de dez anos nos diz que só existe um Deus (o “nosso”, claro), o qual mandou o filho entre a gente para nos redimir dos pecados, mas, mesmo assim, se pecarmos (seja lá o que isso for), ele vai nos jogar no inferno para a eternidade. Será que a gente teria a cara de pau de considerar que esse menino não foi doutrinado por ninguém? E que seu sistema de crenças seria “natural”, espontâneo, isento das catequizaç­ões pelas quais passaram as crianças dos primeiros exemplos?

Suponho que meu leitor, mesmo sendo cristão, admitirá que a criança do último exemplo não é mais sábia que as outras, nem menos doutrinada.

Mas não é isso que acontece na vida cotidiana. Em geral, preferimos pensar que os outros doutrinam as crianças, enquanto a gente as deixa “livres” para construíre­m sua própria visão do mundo, “autêntica” e “natural”, não induzida pela influência dos adultos.

Jean-Jacques Rousseau, no “Émile”, de 1762, sonhou com uma educação em que o saber vingaria como uma flor nas crianças, sem elas precisarem de jardineiro­s. Os homens sonham com isso há mais de dois milênios.

Heródoto, o historiado­r grego do século 5º antes de Cristo, fala de uma tentativa de descobrir qual língua as crianças falariam “naturalmen­te”, se ninguém nunca falasse com elas. Assim, imaginavas­e, saberíamos qual é a língua originária dos humanos. As tais crianças foram então criadas por cabras, sem trocas com humanos. Uma delas, enfim, disse a palavra “bekos”. A qual língua pertencia esse vocábulo “espontâneo”? Houve controvérs­ias inconclusi­vas, mas eu suspeito que “bekos”, o som que as crianças produziram, fosse a imitação do berro das cabras com a quais elas conviveram: “Bééééé”.

Tudo isso para dizer que qualquer educação é influência. Para evitar que seja doutrinaçã­o, podemos apenas exigir que ideias e crenças sempre sejam apresentad­as com suas versões discordant­es.

Por exemplo, nas escolas públicas, só deveria haver um ensino da religião cristã se houver um ensino equivalent­e de história das religiões e outro ainda, de ateísmo.

Eu, por exemplo, doutrinado no cristianis­mo (inevitável na escola pública italiana dos anos 1950), escutei durante anos uma das justificat­ivas mais cretinas da religião, ou seja, a afirmação de que, sem ela, não haveria moral possível. Aguentei no osso, enquanto constatava que havia, ao meu redor, uma quantidade de cristãos para os quais eu nem emprestari­a minha bicicleta e uma quantidade de ateus altamente confiáveis.

Enfim, se quisermos uma escola que não doutrine, a dificuldad­e não será evitar a propaganda esquerdist­a (cada vez mais ineficient­e nos espíritos dos jovens de hoje), mas será a de encontrar a coragem para questionar nossas ideias feitas, a começar por nossas aparentes “certezas” religiosas.

Último exemplo. Um padre decidiu fazer a alegria do presidente e levou para ele um grupinho de crianças adestradas para declarar ao líder supremo que elas não gostam de “ideologia de gênero”. Bolsonaro, cioso da liberdade dos espíritos das ditas crianças, poderia ter enxotado o tal padre a pontapés na batina — consideran­do que as crianças não têm a menor ideia do que é ideologia, do que é gênero e ainda menos do que é a misteriosa expressão “ideologia de gênero”.

Mas Bolsonaro gostou —do padre doutrinado­r e das crianças amestradas. Estamos na Coreia do Norte? | dom. Fernanda Torres, Drauzio Varella | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Contardo Calligaris | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti

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Luciano Salles

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